sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Os motivos (teóricos) da minha decepção com Péter Esterházy em “Os verbos auxiliares do coração”*

Colaboração de Gustavo Melo Czekster

Há algum tempo eu não escrevia nada mais teórico. Pelo menos nada publicável; mantenho meus escritos teóricos para consumo próprio. No entanto, devido à minha leitura de “Os verbos auxiliares do coração”, de Péter Esterházy, como parte do evento “Leituras do Séc. XXI”, senti necessidade de escrever as minhas considerações. Nem tanto em relação à palestra do professor Biagio D’Angelo – que foi muito acurada, inclusive ajudando a fundamentar o meu ponto de vista neste breve ensaio -, mas com o fato de eu ter me sentido logrado ao final da leitura.
Ao término da leitura de “Os verbos auxiliares do coração”, de Péter Esterházy, eu me senti incomodado. Foi difícil precisar o motivo. Em um primeiro momento, poderia ser a história, que trata da forma com que o autor/personagem/narrador lidou com a morte da sua mãe, em um acerto de contas amargo com o passado. Contudo, logo afastei esta possibilidade: a literatura de luto virou um rentável filão editorial e existem dezenas de livros explorando leitores com relação a tal sentimento, não causando mais o frisson que se esperaria de assunto tão polêmico (A este respeito aconselho a leitura do artigo da revista Época presente no link http://revistaepoca.globo.com/cultura/noticia/2011/09/literatura-de-luto.html). Em uma segunda análise, pensei que o desconforto poderia estar ligado ao fato do autor/personagem/narrador ter descrito as suas sensações após a morte da mãe em algo pretensamente biográfico (podemos confiar tanto assim no autor a ponto de saber que o escrito realmente ocorreu?). A figura da mãe é carregada de simbolismos, e pareceu-me confortável abordar um tema em que o leitor possui capacidade de identificação instantânea, pois todo mundo já perdeu algum ente querido e todo mundo tem mãe. Com estas variáveis na equação literária, torna-se difícil fazer um texto que não seja sucesso. No entanto, não foi isso que me deixou desconfortável, pois todos sabem que, desde a Ilíada e a Odisséia, na realidade só existem duas histórias em torno do qual a literatura circula nas mais diversas variações: a volta para casa e a batalha pelo auto-conhecimento. Por fim, após uma longa deliberação interna, consegui precisar o que me incomodou: a simbiose indecente e cômoda de autor/personagem/narrador, um dos traços da literatura contemporânea, em algo que considero uma vulgarização do voyeurismo, uma demonstração estéril de virtuosismo.
Seria um bom momento para citar Hannah Arendt e o seu conceito de “banalidade do mal”, que também se aplicaria no que pretendo escrever, pois Esterházy age dentro das regras da literatura de forma a banalizar os seus sentimentos e manobrar o leitor em busca de uma falsa epifania. Neste diapasão, considero o subtítulo “Uma introdução à Literatura” como a expressão mais irônica da sua real intenção, pois Literatura envolve sentimentos genuínos, ainda que o autor seja o primeiro mentiroso, pois, se transmite o que pensa com tal intenção, ele não é mais genuíno e nem é mais sentimento. Aqui não é o momento e nem o lugar correto para expor esta ideia. Prefiro me deter no traço do contemporâneo que detectei, gerando um afastamento dos meus sentimentos de leitor em relação ao livro.
Por muitos anos, a crítica literária debateu a figura do autor diante da sua obra: seria necessário ler um livro sabendo quem foi o autor ou as suas intenções na hora de escrevê-lo? Em alguns momentos, inclusive, chegou-se ao extremo de defender uma análise literária na qual o autor não teria mais nenhuma relevância, adotando somente a obra como paradigma de referência. Esta teoria foi chamada de “a morte do autor”, mas o assunto pertence ao campo da crítica literária. Sou um leitor, não um crítico. Destaco esta teoria somente para dizer que, hoje, ocorre o contrário do apregoado nela: parece-me que os livros contemporâneos só possuem validade quando lidos em conjunto com a vida do autor. A pulsão criativa tão louvada pelos críticos deslocou-se da epifania de um texto bem escrito para o quanto este texto está vinculado à vida do autor que o produziu. Quanto maior a identificação dos fatos narrados por ele com o seu texto, melhor seria a experiência de vida nele descrita. Os leitores estão se tornando voyeur das vidas dos autores, e confundem tal vinculação com excelência literária.
É uma tendência da literatura contemporânea, e vale a pena observar, pois a observação é o primeiro passo para a desconstruir um engodo ou reafirmar uma realidade. Para ficar somente em exemplos atuais, destaco dois livros em que isto aconteceu: “O filho eterno”, do Cristóvão Tezza, e o recente “A queda”,do Diogo Mainardi. São obras cuja análise não se detém no seu valor literário, mas em circunstâncias de vida enfrentadas pelos autores, abordadas “com coragem” (para usar um eufemismo tão amado pela crítica). São livros que necessitam de forma indelével da figura do autor para existirem e serem valorizados pelos leitores.
Todo leitor procura o autor dentro do seu texto, de forma consciente ou não. Impressiona na literatura atual que o status de autor tenha adquirido maior importância do que a própria história narrada, como se a tentativa de criar vida em um livro dependesse da aparição mágica do demiurgo na trama. Recordo aqui Foucault e a sua defesa do locus ocupado pelo autor em relação à história:
“(…). É sabido que, em um romance que se apresenta como o relato de um narrador, o pronome da primeira pessoa, o presente do indicativo, os signos da localização jamais remetem imediatamente ao escritor, nem ao momento em que ele escreve, nem ao próprio gesto de sua escrita; mas a um alter ego cuja distância em relação ao escritor pode ser maior ou menor e variar ao longo mesmo da obra. Seria igualmente falso buscar o autor tanto do lado do escritor real quanto do lado do locutor fictício; a função autor é efetuada na própria cisão – nessa divisão e nessa distância.” (“O que é o autor?”. In: FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Coleção Ditos e Escritos. V. III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. P. 264-298)
Na literatura contemporânea, a divisão entre narrativa e autor é cada vez mais desconsiderada. Em uma tentativa de criar vida na ficção, o próprio autor aparece na obra como autor/personagem/narrador, caso de Péter Esterházy. No entanto, não é a vida que um autor deve buscar, e sim a sua imitação. Se não existir um motivo específico ou ficcional para que o autor figure na narrativa, a sua presença se torna um fardo, além de demonstrar insegurança sobre a recepção, pois quem pode criticar “Os verbos auxiliares do coração” sem criticar o próprio autor que narra a sua gama de sentimentos díspares? A confusão de tragédia – no conceito aristotélico – com melodrama é visível, e a presença do autor só potencializa esta sensação de desconforto, de que criticar o livro é impossível sem criticar o autor que lhe deu origem. Pelo teor dos demais comentários e postagens feitas no blog do “Leituras do Séc. XXI”, o livro é elogiado mais pela pena que os leitores ficam em relação ao seu autor, e não pelo valor intrínseco da narrativa, cuja estrutura fria e cortante soa com o mesmo vazio estético de uma casa projetada por Le Corbusier.
Na primeira parte do livro, o autor/personagem/narrador se entrega a uma descrição detalhada dos sentimentos conflitivos que se sucederam pouco antes e pouco depois da morte da sua mãe. Na segunda parte, o autor se entrega a uma fantasia intertextual, em que trata da mãe como um misto de criatura verdadeira com ficção, tecendo longos comentários que demonstram a sua erudição e o manancial de obras que constituíram a narrativa, até terminar em um mistura bestial e excelsa de Édipo com Saturno. Poderia ter funcionado, se o autor/personagem/narrador não tivesse sacrificado a verossimilhança e o sentimento para demonstrar os seus livros de formação. O livro ficou no meio termo de um depoimento sentimental e um exercício de estilo, com a diferença de que não conseguiu virar nenhum dos dois, fracassando em ambas as tentativas.
Façamos uma auto-análise: nossos comentários sobre os livros se prendem à história narrada e a sua capacidade de atração ou estamos falando de como o autor articulou a sua experiência de vida dentro de um livro? São abundantes as análises de livros tentando vinculá-lo às vidas dos seus autores. Quando não conseguem isto, o desconforto é palpável, haja vista a quantidade de indagações e criações mirabolantes que perseguem a crítica quando a figura do autor de uma obra portentosa se desvanece sem deixar um campo seguro de análise, caso de Shakespeare. Aliás, como se torna difícil analisar uma obra literária sem a muleta confortante que é a vida do autor! Tudo soa tão explicável quando fazemos esta análise em conjunto – até mesmo a arte.
No caso de Esterházy, o desconforto é ainda maior, pois ele anuncia a sua intenção de nos comover pela escolha do assunto logo no prefácio. Quando afirma “Faz quase duas semanas que minha mãe morreu, tenho de me entregar ao trabalho antes que a necessidade demasiado ardente de escrever sobre ela recue para o mutismo covarde com que reagi à notícia da morte”, é quase impossível distinguir se a força motriz do impulso criativo é o desejo de compartilhar a angústia dos sentimentos com o leitor ou se é a vontade de aproveitar uma tragédia para escrever um livro. Nenhuma pessoa de sã consciência vai dizer que Esterházy escreveu “bobagem” quando pretendeu abordar a morte da própria mãe. O que incomoda é que o próprio escritor veja a intensidade do assunto e coloque uma estrutura literária visando compartilhar a sua intimidade com o leitor, que espia por entre a cortina, ansioso pela vulgaridade de uma exibição familiar. O meu desconforto se situa no fato de não considerar isto pulsão criativa, e sim no fato de que o escritor viu, na sua tragédia pessoal, a bela oportunidade de fazer literatura sobre um tema universal. E declare isto, não para angariar simpatia ou repulsa, mas como uma exibição narcisística. Podemos dizer que toda forma artística é uma extensão do narcisismo do seu criador, mas, ainda que respeite esta vontade de brincar com os leitores, receio que o escritor falhou naquilo que é mais importante: a verossimilhança.
Não estou dizendo que o livro seja mau escrito, longe disto. Inclusive penso que a história se constrói mais nos intervalos entre a narrativa e as notas de rodapé, que geram ondas de atrito e tensão, e isto é interessante. Contudo, resta evidente que o autor se refugiou na segurança de um desabafo, transformando suas sensações em uma obra literária, mas que, retirado o suporte do luto pela mãe, não se sustenta sozinho. Pouco se diferencia de um diário e – para situar em uma obra de alcance mundial – perde feio para a veracidade do “Diário de Anne Frank”. O autor deglutiu a emoção e, ao invés de transferir a dor supostamente sentida para o leitor, acabou criando uma falsa confissão ou admissão de culpa. Os leitores conseguem ver o autor e não afastam o livro da sua imagem, simpatizam com a dor não por causa da narrativa, e sim por causa da figura intrometida do próprio criador.
Tenho dúvidas se um livro pode se fundar exclusivamente na figura externa do autor. O importante deveria ser as ações internas, a fluidez da história, as mudanças e os sofrimentos experimentados pelos personagens. Quando o autor coloca o foco sobre si mesmo como parte constituinte da trama, ela acaba enfraquecendo, pois se torna uma imitação de pulsão literária. Ainda bem que a “Poética” de Aristóteles faz coro às minhas declarações, quando afirma:
“A mais importante dessas partes é a disposição das ações: a tragédia é imitação, não de pessoas, mas de uma ação, da vida, da felicidade, da desventura; a felicidade e a desventura estão na ação e a finalidade é uma ação, não uma qualidade. Segundo o caráter, as pessoas são tais ou tais, mas é segundo as ações que são felizes ou o contrário. Portanto, as personagens não agem para imitar os caracteres, mas adquirem os caracteres graças às ações. Assim, as ações e a fábula constituem a finalidade da tragédia e, em tudo, a finalidade é o que mais importa”. (ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A poética clássica. 7a ed. São Paulo: Cultrix, 1997, p. 25).
Sabendo que a emoção foi deglutida e assimilada antes de virar livro, tudo é feito para gerar uma falsa sensação de intimidade. As confissões inoportunas, os rompantes e desabafos, a fúria dos sentimentos, tudo soa falso. O autor pretexta uma pulsão irresistível para escrever. Utilizando a figura de um autor/personagem/narrador, é impossível não ser bem sucedido. Ele utiliza a curiosidade mórbida do público leitor com as suas reações para criar intimidade e, neste aspecto, o leitor é pouco diferente da pessoa que diminui a velocidade do carro para contemplar as vítimas fatais de um acidente de trânsito.
Na literatura contemporânea, é quase impossível dissociar a narrativa da figura do autor. Estamos regredindo na nossa análise: deixamos de ver a verdade de vida contida no texto literário e consideramos mais autêntico o texto que mais se aproxima da vivência do autor. Sabendo disto, o autor se refugia no comodismo de narrar, sob um verniz literário, uma história pessoal, seja de tristeza, separação, angústia, superação, vitória. É a vulgarização do voyeurismo; estamos virando voyeurs da vida de um autor.
Tal fato não deveria me decepcionar, pois é uma das cláusulas do longo contrato de ficção firmado entre autor e leitor. No entanto, em Péter Estérhazy, incomodou-me esta tentativa de brincar com os meus sentimentos, a vontade de usar a literatura não como catarse do sentimento, mas como exploração comercial dele, quase um deboche, uma demonstração de perícia técnica estéril e forçada. Quando vejo a história das suas outras narrativas, deparei-me com um comportamento reiterado: Esterházy escreveu “Harmonia Caelestis”dissecando a sua relação pessoal com o pai e “Uma mulher” foi escrito revelando os bastidores de uma relação amorosa. Não conheço toda a obra dele, e inclusive adquiri o “Uma mulher” para ter certeza desta impressão, mas o indicativo não parece ser muito bom. Ele só consegue escrever sobre aquilo que vivenciou. Não existe criação genuína ou pulsão original; existe a tentativa deliberada de dissecar um sentimento com falsidade e gerar uma leitura confortável. Aliás, quando o autor fala da própria vida em uma forma ficcional, isto é considerado ficção?
No texto anterior que fiz no blog “Leituras do Séc. XXI” (http://leiturasdosec21.blogspot.com.br/search/label/Gustavo%20Melo%20Czekster), reclamei da preferência absoluta da literatura contemporânea pelo narrador em primeira pessoa, que considerei preguiçoso e acomodado. “Os verbos auxiliares do coração” são a epítome desta declaração: o autor anuncia que vai expor as vísceras, mas, na realidade, só revela o seu penteado através de um espelho fosco, quase sem ocultar a vaidade, quase como se dissesse “minha mãe morreu e, olhem só, fiz literatura com isto!”. Talvez minha visão esteja defasada, mas ainda acho mais válida a ficção de um homem que descreve seus sentimentos sobre a morte da mãe sem que referido autor apareça para validar a sua experiência ou – mais relevante ainda – um autor capaz de descrever a morte da mãe sem truques estilísticos e estando com a própria mãe ainda viva, criando para o leitor uma imitação de vida tão forte que espanta pela força. De passagem, recordo da morte de Dora em “Capitães de Areia”, do Jorge Amado, de como ela ganha o status de mãe dos meninos de rua, gerando sentimentos em todos eles, e de como o seu fim acaba sendo uma experiência catártica para o leitor, sem que o próprio Jorge Amado apareça na trama para reforçar a aparência de vida da tragédia vivenciada.
Interrogo-me se esta tendência da literatura atual não seja um grande problema; interrogo-me se estou lendo a vaidade sublime de um autor que se pretende eternizar dentro de um livro ou se estou lendo a representação de vida dentro de um livro. Recordo aqui o sábio alerta de Elias Canetti sobre Sartre: “Sartre sempre se orgulhou e justificou com o fato de se expor. Mas é bastante importante não se expor. Deveríamos recuar e esperar até nos sentirmos arrebatados por dentro. Não deveríamos nos obrigar a dar respostas. Responder não é nada. Responder é falta de liberdade, e, por isso, equivocado.”(CANETTI, Elias. Sobre os escritores. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009, p. 171) Não sei se a figura onipresente do autor é uma necessidade da literatura contemporânea; para ser bem sincero, acho que o texto existe apesar do autor e, não raro, se constrói mesmo é no conflito com ele. O que sei, no momento, sem tirar os méritos de construção do livro, é que vi o jogo maléfico feito por Esterházy para me comover – e me decepcionei com isto.

* Texto originalmente publicado no blog O homem despedaçado

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