sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Solidão Continental - Trecho do romance de João Gilberto Noll




Se o cão caminhava rente a mim parecia por falta de coisa melhor para fazer. Talvez tivesse entrado na mecânica indolente dos meus passos. Nada mais que isso. Sei que me sentia mortalmente desfamiliarizado com o ambiente e que assim eu só poderia perceber o cão feito uma sombra que se alienara de sua matriz — seu corpo verdadeiro habitava uma fonte que, mesmo querendo, eu não podia alcançar. Parecia haver um mundo onde as coisas se preservavam íntegras, mundo com o qual eu tinha rompido em conseqüência de uma doença qualquer.
No lado de lá do muro havia uma escavadeira parada. Marcando talvez uma obra que estivesse para ser iniciada. Ou que sofresse um impasse em sua continuidade logo em seu começo. Em volta da máquina uma verdadeira argila não tivera tempo de se ressecar. Perguntei-me se ali não acontecia nada — como me sentia prestes a acreditar. Um beija-flor suspendia o vôo em frente a uma margarida cansada e entre as macegas uma cigarra ferrava o seu canto, aumentando o calor.
O cachorro já se dispersara de mim. Mirei o azulão do céu, em inusitado regozijo. Não me comprometeria com os ingredientes do cenário. Salvo com a visão insistente do céu — superior aos pequenos dramas que me consumiam. Restaria saber como reassumir a minha faina diária: como voltar a beber da água matutina ingerindo os meus remédios e reembarcar nos meus afazeres do cotidiano, medianamente aflito por não poder dar conta de mais um dia refratário ao meu entendimento…
E depois disso eu teria ainda algum futuro? Como voltar a provar da rotina inofensiva quando se experimenta um mundo como aquele, a se mostrar radicalmente indiferente à minha percepção? Passei a mão pelos pontos do meu couro cabeludo e soube mais uma vez que eu viera mesmo do pronto-socorro e não de minha casa e que era para o hospital que eu deveria voltar, sob pena de queimar uma etapa grave e não encontrar mais minhas próprias referências na cidade, supus.
Ajoelhei-me de cansaço sobre a terra seca. Precisava decidir como voltar. Estava num deserto nos fundos daquela casa. Eu tinha sede. Não queria entrar novamente na casa, pedir água a quem se dissolvera nas sombras me deixando no abandono. Pela claridade, haveria ainda muito dia pela frente. Então tirei a camisa, levei a cabeça para trás e calmamente a torci sobre a boca sedenta. Espremia do pano um líquido alaranjado, misto de suor e sangue renitente, e eu fingia que aquilo me dava algum grau de saciedade.
Não que esse gesto conseguisse de fato aplacar a minha sede, mas devolvia para mim um tantinho do meu sangue com que poderia me restaurar, a tempo de eu chegar naquilo que eu aprendera a reconhecer como Porto Alegre com uma nova força, muito longe da situação que me prendia ao prédio sebento do pronto-socorro. Passei a mão pelos pontos de minha cabeça e pensei se não seria o caso de eu voltar ao hospital, aquele mesmo, na esquina da Venâncio Aires com Osvaldo Aranha e dali só sair de novo com a anuência médica. Pensei que só assim eu poderia retomar a marcha dos acontecimentos, depois do hiato da aventura com Frederico sob o causticante sol daquele tempo — uma aventura muda, agora me dava conta, sim, em que não trocamos uma única palavra.

13.
Olhei para a exuberância do azul do céu e senti que precisava falar com alguém, alguém que pudesse me confirmar, sim, que eu era um homem da mesma espécie do interlocutor e que me encontrava naquela paisagem cuja terra se mostrava em sulcos devido à seca da região, e que o dia era bonito mesmo e o sol doía no lombo.
Vesti novamente a camisa para me proteger. Eu deveria mantê-la no corpo, mesmo que um leve vestígio de sangue ainda insistisse depois da lavagem. Quando chegasse à cidade eu estaria então completamente vestido, inspirando respeito e em conseqüência compreensão pela minha roupa de resto em estado de miséria.
Mas não estava ainda naquilo que eu pudesse considerar uma cidade. Por onde eu olhava via terra esturricada, estrume de animais naquele instante invisíveis, arbustos, macegas, árvores frondosas sob as quais eu era instado a parar por minutos para não cair em insolação. Formigas saíam por fendas da terra e pensei até em ser uma delas para estar em atividade no entra e sai dos formigueiros.
Divisei um vulto olhando para a terra. Aproximei-me, eu precisava ouvir alguém me perguntar e eu responder, falar.
Era um homem velho. Vestia uma camisa e uma bermuda brancas. Ele olhava uma sepultura avulsa. O túmulo se encontrava bem abandonado. Na lápide encardida havia o nome do morto: Elio Drago. Dei boa-tarde ao velho de branco. Dirigi-lhe a palavra, perguntei: Quem está enterrado aí? É o dono dessa granja, ele respondeu. “Era italiano, veio fugido da Itália, depois que manteve relações libidinosas com uma sobrinha de 13 anos, isso se soube pelo seu irmão solteiro que veio atrás do mano e se suicidou meses após a chegada.” Quem o quê?, tive vontade de indagar. Senti-me momentaneamente aturdido diante da fala do homem de branco.
“Aqui Elio Drago se juntou a uma amante pelo resto da vida, uma mulher trinta e cinco anos mais nova, já mãe solteira de um menino. Ele criou o menino, deu-lhe inclusive seu nome de família. Hoje é um jovem que vem às vezes visitar a mãe. É o Frederico, Frederico Drago, que foi viver por sete anos na Itália assim que fez 16 anos, voltou de lá há uns três meses.”
Frederico nascera e tinha sido criado no Brasil. E, mistério dos mistérios, queria aprender a falar português comigo. Ali concluí que eu não o veria mais. E que jamais deslindaria o enigma de um garoto que fora alfabetizado em português querer que eu lhe ensinasse a falar essa língua. Que ardilosos planos ele poderia ter, nos quais me tivesse incluído? Um garoto a almejar sobrepor o meu português ao dele… Pouco a pouco fingiria o sucesso do aprendizado ao pronunciar palavras desse idioma, a formar frases inteiras, a cantarolar canções brasileiras, afirmando possuir uma facilidade tamanha para idiomas, falava com fluência inglês, francês, espanhol, italiano, claro, agora a língua portuguesa, a pronúncia exata, sem sotaque, perfeita, o ritmo da conversação nativa… Eu me admiraria por certo e vassalo cairia diante do seu raro pendor em seduzir.
O velho coçava o púbis com insistência. Falava e coçava o púbis. Reparei que o tecido branco de sua bermuda mostrava-se encardido na região da pélvis de tanto que ele passava a mão ali, não sei com que sentido, sei lá se como um timbre desabusadamente sexual ou o de reiterar que ele era quem era porque trazia em si a marca de uma liderança viril, mesmo que cansada. Não sei se ele queria representar para mim um confronto calado, a demonstrar que eu, mesmo mais novo, não tinha a disponibilidade que ele tinha em sua como que argumentação física. Cheguei a pensar que, por artes da insolação, eu tinha diante de mim justamente a figura do morto enterrado a meus pés, o pai adotivo de Frederico, rapaz de quem eu precisava fugir. E pensei que agora talvez eu pudesse ser despertado enfim por um real apelo carnal, mesmo que esse sopro viesse daquele velho à beira de sua própria sepultura, ele passava a mão no púbis feito uma ladainha pagã, sublinhando cada informação que ele discorria sobre Elio Drago, ele próprio, o lúbrico, o insensato, o fugitivo de seu país para os braços de uma brasileira trinta e cinco anos mais nova, mãe de Frederico Drago, bebê que ele ninava na escuridão do quarto, entoando baixinho canções da Toscana, sua pátria, até que se deita e beija a bochecha da criança e adormece com Frederico no peito; o garotinho se acomoda com o jeito de mamar na mãe que está na cozinha diante do fogão, auscultando o ponto exato para o macarrão.
Elio Drago se encontrava ali comigo. Talvez eu não quisesse dormir aquela noite, eu não quisesse acordar. Eu e aquele velho com a região pélvica escura de tanto manuseio enigmático poderíamos passar as próximas horas vivendo aquilo que eu não conseguira experimentar com Frederico, seu enteado, começaríamos agora, eu daqui, ele de lá — mas e daí?, o que poderia acontecer eu daqui ele de lá, assim —, só me restava fechar os olhos e me alucinar com aquilo que o sol inclemente processasse na minha cabeça quebrada, um homem com dificuldade de lembrar o próprio endereço, quem sabe seu nome, agora na companhia daquele velho à beira de sua própria sepultura, aqui, sob esse sol de 40º, pois é, aqui, eu tendo de ir embora pois precisava pegar Porto Alegre ainda de dia, para entrar no meu pronto-socorro, deitar na minha maca e deixar que o destino me reiniciasse, amém.
O velho com a braguilha encardida parecia ser todo olhos para o túmulo onde voltaria a morrer. Segui viagem antes que caísse a tarde. Virei a cabeça uma vez. Ele já não estava à flor da terra. Mesmo assim abanei para sua ausência, um pouco culpado por não ter tocado em seu braço, alguma outra parte, por não lhe ter transmitido um pouco do calor de vivo… Andei, andei, parei diante de uma árvore com um tanto das raízes à vista, o tronco coberto de hera. A sombra que caía me fez pender a cabeça não pensando em nada, e o que vi foi uma flor viçosa, aveludada, de que eu não sabia o nome, roxa, pétalas meio aladas, asas de borboleta sob a brisa esvoaçavam, pousavam nos meus pés, beijavam meus sapatos e então cessavam. Daquela erupção da terra, roxa, vinha um perfume agreste, tão penetrante que parecia que toda a presença do mundo estivesse posta ali, naquela sucinta corola, rente à qual um desenho trêmulo de um colibri suspendia o vôo e se inebriava e sumia repentinamente me deixando a sós com a flor que eu tinha vontade de morder, mastigar, engolir, cagar em mínimas pinceladas na cueca pra depois limpar.

14.
Naquele instante me ouvi cantando baixinho — as músicas me habitavam quase sem interrupções. O mundo me assoberbaria novamente em Porto Alegre, voltaria a ser espesso demais, e só a música me fazia esquecer por enquanto do peso que eu teria de enfrentar. Para não correr o risco de ficar repetindo meu endereço durante o trajeto de volta à cidade, para não esquecê-lo, anotei-o num papelzinho do fundo do bolso, pois, eu sabia, só com o meu endereço na ponta da língua me libertariam do hospital. Mesmo que em princípio tivesse convicção da geografia da cidade — independentemente de ter ou não o endereço na cabeça —, eu temia, sim, não encontrar mais as minhas referências no mundo, se por acaso queimasse a etapa do pronto-socorro. Se escapasse do período ainda devido como paciente, eu no mínimo continuaria hesitando na memória das coisas mais banais.
A canção que eu no íntimo cantava dava o ritmo da marcha. Eu fui feliz naquela caminhada de retorno a Porto Alegre. O sol estava mais baixo e eu andava com a camisa aberta ao peito, criando um tema melódico que começava sóbrio e aos poucos ia se exaltando a ponto de eu imaginar tufões de sopros, percussão alvoroçada, tímpanos, exultação, meu coração disparava até que tudo ia sossegando pouco a pouco e uma flauta se despedia quase inaudível e os meus passos feneciam. E eu olhava tudo em volta, e quando digo tudo era tudo mesmo, não havia um só ramo separado, uma réstia avulsa de raio solar entre duas copas, ou uma flor solta esmaecida pela pujança de luz, nada disso: cada coisa existia em seu conjunto e eu só sabia captar a vastidão e a vastidão era a unidade mínima de tudo. Eu era um rei. E como rei me sentia. Tão assim, que só me restava parar, contemplar, fruir o que os meus olhos alcançavam. Lá adiante, numa estradinha poeirenta um ônibus velho passava. Ia para onde, até o centro da cidade? Mas eu não me dei o tempo necessário para pensar em providências práticas e deixei que o ônibus me fugisse e fosse ao seu destino sem saber da minha existência ensimesmada.
Eu precisava reiniciar os passos. Por que Porto Alegre me chamava, se eu não queria a dor de um hospital em corredores escuros e fétidos de suor, sangue, pruridos, bandagens, rumores trêmulos? Por que Porto Alegre me chamava?, indaguei batendo no peito até fazer barulho cavo, como se me açoitasse, para não ter de formular a resposta que jamais saberia dar. Por que Porto Alegre me chamava, hein?, ainda insisti e repeti e repeti para não ter de elaborar a resposta que, sim, sim, jamais saberia dar.
Eu teria de chegar a Porto Alegre antes do entardecer. Então me apressei, abri a braguilha, forcei a uretra e mijei mais do que precisava. Mijei em cima de um formigueiro. Brinquei como na infância, de Deus. Feito Deus, eu mandava uma hecatombe sobre os seres inferiores, uma brutal intempérie que os castigaria num ato gratuito. Feito Deus quis descartar qualquer misericórdia. Aquelas minúsculas vidas que andavam em sua faina diária jaziam agora exterminadas em meio à espuma da minha urina torpe. Isso me dava uma força que não costumava encontrar tão facilmente. Eu conseguia eliminar os que interpunham um movimento frenético entre mim e a paisagem. De movimento, apenas uma aragem tímida que mexia imperceptivelmente em algumas folhas distraídas. No mais, tudo coagulava, eu estava retido no instante. Naquela inércia me veio a idéia de estar preparando o meu gesto terminal. Mais uma vez, ele parecia a ponto de ocorrer… Mas mais uma vez, eu sabia, ele tardaria…
Perguntei-me se o meu corpo já não tinha morrido no hospital. E se eu não era um desses fantasmas que apenas se extasiam com o quase nada que os constitui.
Olhei meu organismo, abri os braços para me inspecionar melhor. Tirando a barriga um tanto proeminente, ele parecia razoavelmente bem, ainda era um instrumento carnal, embora não pudesse contar com ele em nenhum desempenho qualificado. O sol baixara mais, mas ainda não se avizinhava o crepúsculo. Eu tinha um tempo para chegar até a minha maca no corredor do hospital. E se ela não estivesse mais vazia? E se me dissessem que o cara que a ocupara tinha morrido? Para onde eu iria? Encontraria a minha residência ou tudo o que me pertencera se esvaíra comigo? E o que eu faria com isso que sobrara, esse cara aqui averiguando o seu próprio corpo, misto de vestígio de sangue, muito suor, e um vago apetite por continuar, mesmo que em sua malfadada solidão? Iria até o Hospital de Pronto-Socorro de Porto Alegre verificar se eu estava à beira de ganhar alta para retomar minha vida de antes ou se não, se eu já tinha ido para o beleléu? Se as portas dos vivos se mostrassem cerradas para uma figura inexistente como eu, o que me restaria senão vagar pelas ruas feito um mendigo sem razão para esmolar?
Olhei o solo bruto de meu itinerário errante de retorno a Porto Alegre e vi uma aliança visivelmente vagabunda, sim, mas ainda meio cintilante contra a relva. Apesar de já ser tarde avançada, a luz puxava um brilho qualquer do pequeno objeto. Peguei-o e ele coube no indicador direito. Estava tão desorientado pelos últimos acontecimentos ou pela falta deles, que de imediato me senti ligado a uma força, mas que não poderia se revelar sob pena de eu não sobreviver. Ou eu bem continuava só, ou, se encontrasse enfim a companhia, eu não chegaria até o hospital nem a lugar nenhum. Mais uma prova inútil na minha vida cheia delas. Resolvi deixar a aliança justa no meu dedo, como uma promessa, sei lá, que eu sabia não deveria cultivar.
Andava de novo, andava agora um pouco apressado. Passei a mão nos pontos da cabeça e era nisso que eu deveria pensar. Os pontos no talho. Deveria, sim, chegar ao pronto-socorro da cidade, ocupar de novo a minha maca se ela continuasse vaga e me abandonar aos possíveis cuidados dos médicos e enfermeiros. Não sem antes disfarçadamente olhar a anotação do meu domicílio escrito no papel e recitá-lo e, pronto! — com a memória do número do meu prédio e apartamento poderia enfim sair do seio dos feridos e me dirigir enfim à minha casa para recomeçar. Por enquanto eu esbarrava nas pedras, resvalava nas folhas caídas com o muco teimoso da terra, ouvia mugidos de bois distantes, canto de pássaros que começavam a voltar a seu sono entre os galhos — eu próprio talvez fosse um deles e não acordasse mais no hospital ou em qualquer outro lugar — escondido de tudo para sempre, em paz…

15.
Foi quando vi uma gata grávida se espreguiçando de pé, as mamas túmidas. Ciciei o som típico que os homens encontraram para chamar os gatos e fiz o movimento com os dedos para o mesmo fim. Ela veio aos meus pés, não ficou à distância e à espreita como os felinos fazem diante de desconhecidos, veio e passou seus bigodes pelos meus tornozelos e ronronou e tudo e sentei na relva arruivada pela inclemência do sol e coloquei-a entre as pernas e passei a mão por seu ventre intumescido; encaixei-a sem muito pensar na virilha; ela levantou o rabo e o calor dos nossos corpos era maior do que eu podia imaginar; a gata então desfez sua posição e pulou sobre a minha perna e se foi autônoma a esperar por sua cria.
De repente, do nada, eu me senti assim como se estupefato. Sim, não que houvesse alguma coisa ou alguém diante do que eu pudesse me sentir em raro espanto. A ocorrência da felina já tinha passado. Peguei no meu pau e ele se mostrava excitado. Sentia-me acalorado para além da existência do verão. Eu parecia ir me inundando de um ponto interior que vinha caudaloso a ponto de eu tremer e em gozo sexual ser jogado sobre urzes e terra seca contendo misteriosamente um lodaçal ou de uma vertente teimosa ou de uma chuva que a memória não podia ali abarcar.
Bebi um pouco daquela água sem olhar seu estado de sanidade. Não senti gosto algum. Sorvi mais uns dois goles. Ouvi o barulho de um avião passar. Levantei-me com um certo custo, feito viesse de uma prostração antiga, da qual eu precisasse enfim me libertar para encontrar um teto seguro antes de a noite descer.
Levantei-me, pois, e senti insegurança em dar meus primeiros passos após ser jogado contra o solo à mercê de alguma força que eu não pude dominar. De onde vinha aquele rompante que me impelira a um soluço genital mesmo que para tal eu não parecesse preparado? Dei uns passos como que incorpóreos: eu não pertenceria mais àquela terra esturricada, meus pés enlouqueceriam, as solas saltariam, no solo mal iriam tocar.
E sob meus pés rasgava-se de repente uma vala para onde pulei assim que a percebi. Na certa uma trincheira de alguma guerra sobre a qual eu não tomara conhecimento, quem sabe de traficantes, de alguma coisa assim, eu estava numa zona periférica. Mas aquele local não tinha o ar de ter sofrido uma conflagração, eu ouvia pássaros, sim, e no meio deles planava um silêncio para sempre obsequioso com os pequenos trinados. Súbito nada mais restou, nem os trinados, nada mesmo, só a mais impositiva calmaria, e então fiquei um tempo sem me mexer para não causar nenhum distúrbio à ordem da hora, assim, os braços caídos, os olhos em meio ao dia que ia se dourando ao se aproximar do entardecer.
Um simples “ai” que eu exalasse seria demasiado. Então, calei-me e o silêncio emergia de mim sem qualquer esforço, era como se a voz não tivesse sido ainda projetada para as grandes compreensões, sim, e eu de fato nada precisava compreender — nem precisava antever o destino onde iria adormecer mais tarde, se em casa ou no hospital. E digo mais: ali não me interessava sequer a saudade que eu quiçá pudesse sentir do garoto nas próximas horas; nem me interessava preparar mais uma rodada de explicações sobre a palavra “saudade” para dar a meus alunos de português para estrangeiros — a palavra “saudade” sobre a qual eu explanava orgulhoso como exclusiva desse idioma. Eu não pensava em nada ali naquela vala e me agachava e me encolhia — um caracol puro feixe de nervos que agora se distendia lentamente e novamente se fechava e se distendia e se fechava…
Recebendo alta, levaria novamente o meu isolamento para o velho endereço talvez naquele dia ainda, e certamente queria mesmo postergar essa passagem, então eu deveria ficar aqui encolhido como bicho, me distendendo e me fechando, no alheamento dessa vala onde sinto a pulsação da terra, de onde lesmas saem de seus ínfimos buracos, a sinalizarem que a seca aqui é ilusória — a umidade, sim, me inundará me redimindo da humilhação por todo esse estado desgraçado, amém.
Até que parei feito uma estaca. Senti um toque meio submerso, certamente de uma ausência que ainda quem sabe eu não tinha condições de desvelar. Mas não, eu agora identificava a fonte do contato, sim: era um bicho irreconhecível, grisalho, pelas frestas do pêlo ralo via-se a carne azulada, um bicho que se achegara e recuara e agora vinha novamente, se desentranhando da terra. Inadmissível que um animal desconhecido do meu vocabulário zoológico viesse tentar alguma conveniência no meu corpo, um animal aparentemente sem maiores desconfianças nem hostilidade. Não se constituía num bicho bonito nem causava em mim algum franco sentimento de rejeição. E me perguntei se não deveria levá-lo comigo aonde quer que fosse, para o pronto-socorro ou minha casa ou pelo menos por mais algumas horas de caminhada a que eu precisasse ainda me submeter.
Ele veio de novo jogando-se macio na minha barriga e eu toquei-o meio confrangido, com um calafrio, e ele em resposta ao meu toque grunhiu sem sinal do que pudesse significar aquele som e eu empurrei-o contra o solo crestado e me levantei e saí do meu esconderijo resvalando duas vezes e quando me libertei do meu estado subterrâneo, agora inteiro na planura de cima, percebi que o sol descia no horizonte e que precisava saber o que fazer de mim, urgente.
Eu temia não chegar a tempo de poder reconstituir a realidade da qual era oriundo, a do pronto-socorro e tudo o mais. Temia, sim, que os médicos e enfermeiros do hospital já tivessem dissolvido da memória a minha presença, que os registros de minha internação se desmanchassem e que, antes desse ponto aqui no fim da tarde, nessa estrada poeirenta sem passantes, tudo o mais seja uma ilusão cunhada por força do meu próprio desabrigo.
Eu estava ali, numa meditação enfermiça — mal de que sempre padecera. Estava ali, tocando os pontos na cabeça, mais uma vez procurando reafirmar o talho que me tinha levado ao pronto-socorro de uma cidade em cujas cercanias eu navegava agora em cogitações febris. Pensei se não seria o caso de alguns robustos micróbios me invadirem por aquele corte na cabeça me deixando tão entregue que nenhum antibiótico teria o poder de me salvar. Dormir, morrer obrigando uns gatos-pingados a sentarem em volta do meu corpo, velando-me por algumas poucas horas para eu ir depressa com o prêmio de não ter mais de aferir a realidade ou irrealidade das minhas circunstâncias. Pensei isso sem sentir a mínima autocomiseração. Se pudesse assim escolher por vias transversas o meu ponto fatal, seria grande a chance de tudo correr bem. Iria de cabeça erguida, um pequeno herói seguro do andamento de seu próprio desfecho.
Estava ali, observando aquilo tudo que chamavam de mundo, e me dizia, era preciso me suicidar se tivesse uma bravura. Eu me perguntava se deixaria alguém culpado diante da minha decisão, como se realmente possuísse alguém objetivamente permeável ao meu desaparecimento. Então corri, me desabalei tanto em direção nenhuma que parecia voar, no duro, uma sensação de que eu não tinha pés nem peito nem cabeça raspando na terra, que eu ia, simplesmente isso, ia no ar, que eu era um sujeito incapaz de me enredar com a gravidade, que eu simplesmente ia em direção nenhuma e que depois disso seria provável que eu não soubesse mais sofrer.

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

11/10 - Último encontro do ano: Solidão Continental





Solidão continental - ou a coragem de narrar
Daniela Langer*

Caros amigos,



“O corpo é uma unidade mínima”, disse João Gilberto Noll em uma oficina para alunos de Escrita Criativa na Faculdade de Letras da PUC. A frase curta é ponto de partida na tentativa de entender a essência da literatura de Noll e o que ele procura expressar através do fazer literário. Porque é corpo o que se vê, se toca e respira. "O corpo, realmente, está em si mesmo". O corpo é fulcro de dor e prazer, de sensações empíricas e imaginárias. A literatura também não é isso? A literatura não é (ou deveria ser) a semente da dúvida, os caminhos que se bifurcam, o prazer e a dor?
Desde o primeiro livro do autor, a questão do corpo se faz presente. "O corpo é fundamental no que escrevo para contar o desejo de contar a dor". 
Para Noll, seu primeiro romance, A fúria do corpo, está distante de ser um romance naturalista sobre a pobreza carioca. O livro fala da mendicância simbólica - o romance é falta. É o escatológico e o pornográfico. O sexo dos personagens é hipertextualizado, um hipersexualismo. "Literatura é expressão acima de qualquer coisa". O papel do escritor é "dar a cara a bater, levantar o tapete, revelar a sujeira. A literatura tenta revelar aquilo que não falamos em sociedade".
                Pode-se dizer que Noll fez do corpo, ou da experiência literária do corpo, da errância dos personagens sem-nome, múltiplos e ao mesmo tempo os mesmos em meio à multidão, sua poética. Portanto, nada mais natural que em seu romance mais recente, Solidão continental, a temática voltasse a emergir. "Escrevo porque não sei, porque quero tocar em coisas que nem sabia existir. É PRAZER TENEBROSO e MEDO - tocar em coisas que envergonham, que deveriam, socialmente, serem caladas".
Para nosso encontro de sábado, proponho o risco. E que na leitura de Solidão continental não deixemos de lado o estranhamento, pois só com ele seremos capazes de resignificar o que acabamos de ler.
Proponho aceitar a literatura como o escoadouro de qualquer coisa que se dá no ato da própria escrita. Como estado de vazio. Como a própria mancha do texto que se transforma, uma vez lida, em página em branco. 
          A escrita é o acaso e quem deverá mediá-la é o escritor. Nessa mediação, Noll não se furta de revelar o interdito. O escritor deve NOMEAR o INOMINÁVEL. Noll propõe que o leitor se enriqueça com a demência, com o desvio da forma, com um raciocínio muitas vezes mal ajambrado. É a VISÃO GAUCHE que torna a literatura humana.


*Daniela Langer é escritora, autora do livro de contos No inferno é sempre assim - e outras histórias longe do céu. Este ano, co-organizou o livro Por que ler os contemporâneos? autores que escrevem o século 21. Cursa mestrado em Escrita Criativa na PUCRS.
** As frases entre aspas são do escritor João Gilberto Noll em oficina para alunos do curso de graduação e pós em Escrita Criativa da Faculdade de Letras da PUC no primeiro semestre de 2014

Solidão Continental - encontro com o autor João Gilberto Noll, sábado 11/10

No próximo sábado, dia 11 de outubro, encerraremos mais uma etapa dos Seminários Leituras do Século XXI. Agradecemos a participação e colaboração de todos os colegas e parceiros de jornada durante esses três anos.

Este último encontro será uma grande celebração da literatura e do fazer literário. Debateremos o romance Solidão Continental, de João Gilberto Noll, com mediação da escritora Daniela Langer.
Na mesa, contaremos com a presença do autor João Gilberto Noll e com os organizadores dos Seminários, os Profs. Drs. Léa Masina e Ricardo Barberena.

Será uma manhã de debate, leituras e a oportunidade de conversar com um dos grandes autores da literatura brasileira contemporânea.


quinta-feira, 28 de agosto de 2014

13 de setembro - K, relato de uma busca

Leituras do século XXI receberá dia 13 de setembro o professor e jornalista Vitor Necchi que apresentará sua leitura do romance K - Relato de uma busca, de Bernardo Kucinski.

Como preparação para o encontro segue resenha publicada no Observatório da Imprensa


Páginas de dor e denúncia





O subtítulo – enxuto como o conteúdo – resume-se a “Relato de uma Busca”. Na verdade, trata-se de um feixe de buscas interligadas, históricas e íntimas, políticas e existenciais, recentes e ancestrais, todas pingando sangue ou empapadas de lágrimas.
Escrito na terceira pessoa, não disfarça a ruminação da primeira pessoa – o narrador, atento e ferido diante da inglória peregrinação empreendida pelo pai à procura da filha torturada e desaparecida nos desvãos da ditadura militar. K é uma vivência literária única. Singular e plural, a misteriosa inicial, remete ao protagonista, ao autor e ao objeto do relato, porém descobrimos que todos somos K. Conhecemos o desfecho e, mesmo assim, prosseguimos com a respiração presa até as derradeiras palavras. Teoricamente um romance, K nos enxota para a historiografia. Qualquer que seja a condição e o ânimo do leitor.
Tragédia e catarse, a brutalidade em estado puro e o absurdo de reinventá-la para torná-la real. Reportagem, denúncia, grito de vingança, pranto engolido, imersão no processo da criação literária. São 182 páginas de dor, um dos livros mais penosos e absorventes que li, ficção-verdade, imperiosamente compartida e partilhável. Letal, ninguém escapa ileso deste registro despojado, comedido, por isso arrasador.
Quieta, mas pulsante
Quando o delegado do DOPS capixaba, Cláudio Guerra, matador profissional assumido, descreveu numa entrevista como deu sumiço nos corpos da professora de química da USP, Ana Rosa Kucinski, do marido, Wilson Silva, e de uma dezena de militantes no forno de uma usina de açúcar em Campos, norte fluminense, ainda não lera a primeira edição deK. Se lesse antes, talvez não conseguisse entrevistar o velhote arfante, agora pastor protestante.
Ao ouvi-lo desfiar com a voz monótona as matanças das quais participou e os detalhes sobre o sumiço dos corpos impôs-se novamente a terrível e hoje corriqueira “banalidade do mal” identificada por Hannah Arendt. A guerra suja da qual participara com tanto empenho não havia terminado, Cláudio Guerra precisava falar, aparecer para que os antigos camaradas não o convertessem em novo desaparecido.
“Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu.” Esta engenhosa duplicidade confessada na advertência inicial confere ao livro palpitação e pungência. O angustiante percurso do judeu errante, Meir Kucinski, para descobrir traços da filha e do genro é autêntico, o repórter Bernardo Kucinski dispensou-se de fabular, ouviu-o do pai, talvez em ídisch (o autor recusa a grafia iídiche adotada pelos dicionaristas) e o reproduziu em vernáculo. K é também um memorial de um idioma liquidado pela Solução Final.
Outros episódios, evidentemente construídos com base em investigação jornalística, são ficcionais, porém tão magistralmente encaixados no relato que alcançam um paroxismo emocional difícil de encontrar na moderna literatura brasileira. Caso de “A Terapia”, em que Kucinski descreve o desabafo da faxineira da “Casa da Morte” em Petrópolis para uma psicoterapeuta do INSS. Naquela tranquila mansão serrana, os presos eram interrogados, torturados, mortos e depois “desaparecidos”. Ana Rosa e o marido, certamente passaram por lá. Cláudio Guerra confirmou que os corpos incinerados em Campos eram originários do Rio de Janeiro.
Os Kucinski, pai e filho, não poupam ninguém: políticos, rabinos, líderes comunitários judeus, sumidades acadêmicas da USP, não escapam sequer os cabeças da resistência armada que insistiram na insurgência suicida mesmo quando a repressão fechara todas as saídas. Só escapa o arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, que carinhosamente recebeu o pai de Ana Rosa.
Implícita, quieta, porém pulsante, K é uma indagação sobre a condição judaica. A única para a qual o autor oferece uma resposta. Não muito diferente da encontrada por Benedito Spinoza: ser judeu é buscar.
***
Alberto Dines é jornalista

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Amílcar Bettega fala sobre o romance Barreira - Parte 2 de 2




O escritor Amilcar Bettega responde:

Você pode adiantar alguma coisa a respeito do novo romance a ser publicado? (Barreira)

O que eu posso adiantar é que:
1) não é um livro muito fácil. É um livro que pede certa parceria do leitor, no sentido de que nem sempre a leitura vai ser fluida, prazerosa, que às vezes ele, o leitor, pode até ser tentado a largar o livro. Não sei se tenho o direito de pedir este crédito de antemão ao leitor, mas o livro precisa dessa paciência, dessa persistência. Como todo o livro, eu creio. É sempre a partir de uma relação de confiança entre o leitor e o livro que a experiência da leitura começa. Esta relação é frágil e pode ser quebrada a qualquer momento, exige esforços de parte a parte. Espero que no meu livro este esforço seja recompensado.

2) É um livro que tenta uma maneira diferente de chegar no leitor, pode ser que nem sempre consiga, mas tenta.

3) É um livro imperfeito, bastante imperfeito, com alguns excessos de um lado e lacunas de outro.

4) O que quero dizer é que não se trata de um livro fechadinho, redondinho, perfeitinho (aliás, tenho cada vez menos paciência para livros fechadinhos, redondinhos e perfeitinhos)

5)  É um livro que conserva certo tom difuso, com coisas não muito bem explicadas, ou pelo menos com várias hipóteses possíveis. A coisa gira em torno de um ou mais mistérios – em alguns momentos tem até certo tom policial – mas nada se revela como certo. Há vozes e discursos contraditórios, coisas que são afirmadas e negadas com a mesma ênfase.

6) É um livro que insiste na ideia de que há zonas obscuras (na vida, no real, na narrativa, no texto) e que estas zonas devem ser respeitadas.

7) É um livro para ser lido sem a preocupação de entender tudo ao nível da trama, é para se deixar levar.

8) E já que falo de trama, o que para mim nunca interessa muito, mas tem gente que não consegue passar sem isso, vai lá uma sinopse: o romance está ancorado em três personagens que interagem em alguns momentos da narrativa. Um turco de uns 60 anos (vivendo no Brasil), que deixou Istambul aos 6 e retorna pela primeira vez à sua cidade para encontrar sua filha (Fátima), fotógrafa, que uns meses antes viajara para ver a cidade que só conhecia através dos relatos do pai. Chegando a Istambul este pai se dá conta que a filha está desaparecida. Antes do desaparecimento, Fátima tem um breve envolvimento com um francês (Robert), autor de guia de viagens, que está a Istambul meio perdidão, em plena crise existencial, profissional, emocional, etc. Robert, por sua vez, ao receber a notícia da morte do filho (Lucas), retorna a Paris, toma conhecimento das atividades (que ele ignorava) do filho como artista, e isto o leva de volta a Istambul para encontrar Marc, um artista francês meio louco (ou que se faz de louco), amigo do seu filho, e que leva Robert à obra de um artista turco (Ahmet) que ninguém sabe exatamente se existe ou se é uma invenção de um coletivo de artistas ou se é uma segunda identidade (secreta) de Marc. Na obra (macabra) de Ahmet, alguns jovens podem ter deixado a vida.

9) Num sentido mais amplo, o livro fala sobre coisas perdidas, ou melhor, sobre coisas inacessíveis, sobre barreiras intransponíveis: barreira da língua, barreira entre gerações, barreira entre pais e filhos, barreira entre o real e a representação do real, entre o real e o imaginado, barreira entre o vivido e a memória do vivido, barreira entre o que se deseja resgatar e o que já desapareceu,  barreira na comunicação, entre aquilo que se quer dizer e o que se consegue que seja dito – e por que não dizer entre o livro que se quer escrever e aquele que se consegue escrever?

Amílcar Bettega fala sobre o romance Barreira - Parte 1 de 2

Em e-mails trocados entre Léa Masina e Amílcar Bettega, o escritor falou sobre o romance Barreira e apresentou interessantes chaves de leitura. Generosamente, as correspondências foram cedidas para o blog. Para muitos, ouvir/ler um autor falar de sua obra aguça a curiosidade, auxilia no percurso da leitura. No caso de Barreira, acredito que as palavras de Bettega incitam à reflexão e expansão das infinitas possibilidades da obra.




Querida Léa,

Mais uma vez obrigado pela leitura, pelo esforço crítico, que só enriquece o meu texto.
Como sempre em literatura, pelo menos naquela que nos interessa, há muitas maneiras de chegarmos no livro. Tu levantas algumas, todas válidas. Calvino é um dos meus santos. É verdade que a gente pode sentir ecos de “Cidades invisíveis” nas descrições que faço da cidade. Do “Se um viajante...”, que adoro, penso mais na coisa da repetição, do retorno a um ponto de partida. Mas são coisas que me vêm agora, a partir da tua observação. A verdade é que a gente escreve sempre com os “santos”, essa gente toda que faz parte da nossa formação continuada.  Eles estão sempre presentes em tudo o que a gente escreve. Já “Amores difíceis”, eu não li.

Por outro lado, uma intertextualidade intencional que, eu sei e sabia desde o início, para aflorar dependeria da revelação do autor (como faço agora para ti) ou da leitura de um cinéfilo atento: trata-se de Bariera, um filme de 67 do polonês Jerzy Skolimowsky. É o título do filme que o personagem Robert Bernard assiste no final do livro e que lhe permite uma espécie de insight. A descrição que lá está corresponde exatamente às cenas do filme. Foi um filme que me marcou muito porque, quando assisti, praticamente não li as legendas, elas me pareceram totalmente acessórias, até prejudiciais. É um filme tão plástico, imagético, tão bonito nisso, que as palavras ali, pareceu-me, estragavam. Mais tarde, li uma entrevista do Skolimowski onde ele de certa forma confirmava a impressão que eu tive, ele dizia que queria fazer um filme que não sendo mudo, prescindisse das palavras. Quando vi o filme eu já estava me encaminhando mais para o fim da escrita do livro, mas achei que ele tinha tudo a ver com o que eu estava tentando fazer. Ou seja, não era a trama que me interessava (aliás nunca foi, nunca é isso o que mais me interessa num livro), eu queria fazer algo que funcionasse por uma acumulação de cenas ou quadros fortes esteticamente, ou momentos narrativos altos, ou imagens, sei lá, mas pontos fortes que reunidos num todo pudesse provocar no leitor uma experiência estética interessante e de algum impacto. “Esquece a trama”, “esquece a historinha”, acho que é isso que o romance diz o tempo todo no ouvido do leitor, “relaxa e vamos junto”. Foi isso que eu senti vendo o filme (se tiveres a oportunidade de ver, eu recomendo, é belíssimo – até a pouco estava disponível no YouTube, mas na última vez que fui checar vi que tinham tirado). Além disso, acho que problematizo essa questão da palavra no livro, então achei pertinente trazer esse filme pra dentro.

Voilà, te dou de bandeja uma das chaves, a do autor, que é, como a gente sabe, apenas mais uma.

Com relação ao “trauma” (do incêndio do Grande Bazar) que tu mencionas, ele está ali também, mas ligado à “trama”, está ali mais para satisfazer as necessidades de coerência lógica dos seguidores de historinha. Se um desses senhores, que em geral são furiosos, me botar a faca no peito e me acusar de fazer coisas sem pé nem cabeça eu posso dizer que no incêndio morreu a mãe e a irmã de Ibrahim, fato que praticamente deixa o pai dele afundado na depressão e que, sem saber o que fazer e sem se sentir em condições de cuidar do filho, aceita a sugestão do irmão (tio de Ibrahim) para se mudarem para o Brasil, onde este já vivia – fato que por sua vez dá origem a este personagem em permanente crise existencial que é o nosso heroico Ibrahim.

Já não sei se tudo isto pode ser verificado no texto, mas creio que sim. Se tirei alguma coisa, deixei as pedrinhas necessárias ao pessoal que tem medo de escorregar ou não gosta de pisar no lodo. 

Um pouco antes de o livro sair, a organização do Prêmio Portugal Telecom organizou um livro de entrevistas com os ganhadores ao longo dos 10 anos de prêmio no ano passado.  Trata-se de “O livro das palavras”, pois lá eles me faziam uma pergunta sobre o Barreira que, como eu disse, ainda não tinha saído.

Transcrevo abaixo a resposta. De repente tu tiras algo daí para o teu blog.

E fico aqui na espera que tu escrevas a tua leitura crítica do Barreira, e que a publique por aí.
Grande abraço do


Amilcar

Um pouco sobre Barreira, romance de Amílcar Bettega

(Matéria publicada na Revista Cult)




por Mariana Marinho
Há cerca de 20 anos, quem procurasse por Amilcar Bettega debruçado sobre papel e caneta, exercendo o ofício de escritor, não o encontraria. Isso porque o gaúcho formou-se em Engenharia Civil e, durante cinco anos, trabalhou em canteiro de obra. “Logo de cara sabia que Engenharia não era a minha praia, mas ainda não sabia o que queria fazer. Comecei a escrever tarde, aos 27 anos. Nessa mesma época, decidi fazer o mestrado em Literatura Brasileira. Era uma forma de sistematizar meu conhecimento em literatura, que era lacunar e feito por meio de leituras aleatórias”, conta.
Apesar do início tardio, Amilcar, hoje, é conhecido como um dos mais talentosos contistas brasileiros: pelo volume de contos O vôo da trapezista (Movimento/IEL, 1994) recebeu o prêmio Açorianos de literatura e com Os lados do círculo (Companhia das Letras) conquistou o prêmio Portugal Telecom.
Porém, não foram os contos que o trouxeram ao Espaço Revista CULT: Amilcar lançava seu romance de estreia Barreira, o décimo da coleção Amores Expressos da Companhia das Letras.  O projeto levou 16 escritores brasileiros a diferentes cidades do mundo para escreverem uma história de amor em cada local.
Barreira é ambientado em Istambul, onde Amilcar esteve por um mês em 2007. A obra conta a história de Fátima, uma jovem fotógrafa brasileira que decide viver na capital turca, e seu pai, um imigrante turco estabelecido no sul do Brasil que volta à cidade natal em busca da filha. Fátima se envolve com um artista performático de intenções duvidosas e com um francês autor de guia de viagens.
Amilcar chegou e partiu de Istambul da mesma forma: sem uma história definida. “Isso não me preocupava. Queria sentir a atmosfera da cidade, o que ela podia me passar. Escutá-la e tentar transpô-la para o livro independente da historia que fosse. Fiz um diário -passava o dia andando e anotava tudo: o que via, onde ia. Muita coisa que está na boca e nos atos das personagens são observações e pensamentos meus”, diz. Na segunda parte, por exemplo, Fátima comenta que a primeira impressão que teve de Istambul foi a de que chegava a uma cidade ocre.
O romance demorou seis anos para ficar pronto. “Nunca escrevi um texto que ultrapassasse vinte páginas. Precisei alterar minha prática de escrita. O romancista precisa trabalhar com uma visão mais periférica da estrutura ”, explica. Dividido em três partes, Barreira é composto por estruturas narrativas distintas. A primeira parte, por exemplo, é escrita num fluxo contínuo a partir da visão de Ibrahim, pai de Fátima. “Não sei em qual momento me decidi por esta estrutura. Não faço muitos planos. A primeira frase saiu longa e fui alongando. Achei que casou bem com o estado de espírito da personagem, que vaga por uma cidade que, ao mesmo tempo, é e não é mais sua”, diz.
“A maneira que a história é estruturada é tão ou mais importante em si do que a história que está sendo contada. Eu quero que o leitor se pergunte por que está estruturado desta maneira. Quero se seja instigante para ele. Antes de ser uma expressão de ideias, a expressão literária é, sobretudo, uma expressão estética. A história sequencial, que tem um enredo no qual tudo se esclarece ao final, não me interessa nem um pouco como leitor e nem como escritor”, completa.