domingo, 28 de abril de 2013

Vertigem e alucinações em Baden-Baden

Resenha de Vinícius Jatobá para o portal Terra.

Não com menos vertigem e alucinação Dostoiévski atravessou seus dias; ao menos se sua mente delirante for algo próxima à criada por Tsípkin, poucas personagens de seus inúmeros romances e contos lhe fazem par. Centrado na reconstituição dos dias de Dostoievski na cidade alemã de Baden-Baden, e narrado com fúria e ritmo sôfrego, este belo romance é, como poucas vezes foi realizada, uma franca homenagem à literatura confusa, exagerada, maltrapilha e irregular desse genial e incontornável russo.

Há três planos na narrativa: o "eu", que é o próprio Tsípkin viajando de trem até Petersburgo enquanto lê as memórias da esposa de Dostoievski e reflete sobre sua vida e obra, reconstituindo os traumas e medos do grande autor russo, assim como o obsessivo e destrutivo vício que ele alimentou pelas aventuras da roleta; o "ela", Anna Grigórievna Dostoiévskaia, que relembra sua relação com Dostoiévski enquanto tenta justificar a si mesma seu amor pelo homem egoísta e exigente que ele é; por fim, o "ele", Dostoievski, devorado pela epilepsia e pela dependência ao jogo, dividido entre a crença enorme em seu próprio talento e o agressivo complexo de inferioridade que alimentava diante de outros autores - sua relação de amor e ódio com Turgueniev é retratada de modo impecável -, e seus eternos problemas financeiros.

A maior qualidade do romance está em sua original retórica. "A assombrosa frase de Tsípkin foi uma criação inteiramente sua", afirma Susan Sontag, na breve introdução. Esses três mundos e universos que atravessam "Verão em Baden-Baden", cada um com sua particularidade e dezenas de nuances, colocam em disposição de seu autor uma série de abordagens possíveis.

A singular frase de Tsípkin nasce de uma ambição clara: ele deseja tudo, tudo na mesma frase, no mesmo instante: sucessivamente, um após o outro, os mundos de Tsípkin, Dostoiévski e Anna se misturam, num sistema de pontuação tão excêntrico que só poderia ter sido inventado por um russo: travessões separam diálogos, descrições, delírios, sonhos, lembranças. De tão singular, é impossível descrever: não há um período central - há apenas acumulação, adição, desenvolvimento, numa frase que transforma também em obsessão a leitura do romance: é difícil livrar-se dele, e o único modo de por fim à esse exigente delírio é atravessar sua última página.

Longe de ser apenas um romance laudatório sobre Dostoiévski, é uma criação que nos brinda com seu pior. Ver o autor de "Os Demônios" e "O Idiota" se humilhando, praticamente vivendo seu próximo minuto como se fosse o último, é uma experiência desagradável: ele nos parece tudo, menos um dos maiores gênios da história cultural recente. Não há nele um pensamento que seja significativo; um ato seu que nos brinde com alguma nobreza.

O homem está ali, no desfiladeiro, e se balança e agoniza tão irresponsavelmente que por um momento é possível temer pela sua destruição total antes mesmo que crie sua sucessão de obras-primas da maturidade a que, em 1867, havia apenas dado um gigantesco primeiro passo com a publicação, no ano anterior, de "Crime e Castigo", e que justificam até hoje seu nome no panteão dos grandes autores russos.

São impressionantes a confusão mental e os conflitos que acometem os dias de Dostoiévski em Baden-Baden, e o retrato criado por Tsípkin ainda possui outros agravantes: sua infidelidade e os planos de abandonar sua esposa mesmo após Anna ter vendido a maior parte de seus bens para ajudá-lo; o jogo duplo que o fazia criticar por trás pessoas que o ajudaram, de odiá-las, e ainda assim ter com elas em troca de favores, e até mesmo para conseguir empréstimos; a fascinação suplicante que dedicava à aristocracia que desprezava e denunciava em seus romances. A figura construída por um homem, Leonid Tsípkin, que tanto ama quanto odeia aquilo a quem dedica o olhar.

Tsípkin questiona-se, também, sobre os motivos da fascinação dos críticos literários judeus que, segundo o "eu" narrativo, "detêm quase o monopólio dos estudos da herança literária" do autor, justamente quando Dostoiévski, um homem que dedicou sua obra a denuncia das condições sociais dos humilhados e ofendidos, não escreveu sequer uma "folhinha" em defesa de um povo "perseguido ao longo de milhares de anos".

Aponta que Dostoiévski publicou inclusive um artigo contra a "tribo judia" onde, repleto de argumentos anti-semitas previsíveis e ofensivos; e comenta brevemente que até em suas narrativas fica clara essa antipatia e postura do autor pela maneira como ele construía as personagens judias - sempre com tintas preconceituosas e caricaturais. Desse modo, a própria relação entre Tsípkin e Dostoiévski - sentimental, intelectual, crítica - é marcada por um impasse vital, e se mostra rica e contraditória, numa luta entre a admiração e a repulsa que segue todo o corpo da obra.

O romance termina com o tocante relato da morte de Dostoiévski: o autor idoso, menos amargurado, porém igualmente intranqüilo, às voltas com complicações familiares e com crescentes problemas de saúde. Tsípkin revisita o apartamento em que viveu o autor, tira fotografias - o que faz Sontag suspeitar que ele anteciparia em quase uma década, caso tivesse a chance editar o livro, as inovações de W. G. Sebald -, e compara o que vê com o que ele imagina ser a Petersburgo da época em que Dostoiévski ali viveu.

É um momento sereno, onde o "eu", "ele" e "ela" que dialogam por todo livro encontram alguma paz. Também é o trecho em que, finalmente e após duas centenas de páginas vertiginosas, o leitor acorda dessa estação chamada "Verão em Baden-Baden". Um romance que certamente vale por duas semanas de ginástica, e que é pouco recomendável a pessoas com algum problema nervoso. Para todo o resto, é necessário, como uma forma de experimentarem o abismo vertical que em momentos de crise e desespero a vida pode oferecer.

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