terça-feira, 21 de maio de 2013

Uma resenha de "História abreviada da literatura portátil"


Resenha de 'História abreviada da literatura portátil', de Vila-Matas para o jornal O Globo

História abreviada da literatura portátil, de Enrique Vila-Matas. Tradução de Julio Pimentel Pinto. Editora Cosac Naify, 144 páginas
Paulo Roberto Pires

"História abreviada da literatura portátil” tem título de ensaio, escrita de ensaio, raciocínio de ensaio. Se fosse mais uma “ficção que se quer ensaio”, talhada nos jogos de paródia do que num dia distante se chamou pós-moderno, certamente já teria se desmanchado no ar. Se permanece 26 anos depois de lançado é porque concentra toda a originalidade de Enrique Vila-Matas. A partir deste que foi o sexto livro de sua carreira, o autor, obsessivo, começou a mostrar que sua insistência (nos mesmos temas, em estratégias de narrativa) resultaria, como nos grandes escritores, em consistência. Tudo o que viria está ali, nada do que está ali é gratuito.
O narrador em terceira pessoa é monocórdio e distante, como sói acontecer em “histórias da literatura” e outros livros canônicos. De vez em quando revela-se na primeira pessoa, sobretudo no brilhante capítulo final. Não há propriamente personagens nem exatamente uma trama. Descreve-se como Walter Benjamin, Marcel Duchamp, Francis Picabia, Blaise Cendrars, Georgia O’Keefe, Edgard Varèse e outros artistas teriam formado em 1924 uma sociedade secreta de 27 membros que dissolveu-se em 1927. Os números são ritualizados como a própria vida dos shandy, assim batizados em homenagem ao Tristram Shandy de Lawrence Sterne — e também com alusões a uma “cerveja amarga misturada com limonada ou cerveja de gengibre” e, ainda, um suposto dialeto de Yorkshire, shandy como sinônimo de “indistintamente alegre, volúvel e louco”.

As principais matrizes desta sociedade secreta são Duchamp e Benjamin, “vagabundos, viajantes errantes, exilados do mundo da arte e, ao mesmo tempo, colecionadores carregados de coisas, ou melhor, de paixões”. Shandy que é shandy, explica o narrador, deve ser “portátil”, ou seja, deve poder carregar consigo toda a sua obra, assim como o artista francês fez na Boîte-en-valise, maleta em que reunia miniaturas de todas as pinturas e ready-mades que havia realizado até a década de 1930-40. Ao atravessar os Pirineus a pé, na rota de fuga do nazismo que terminou em suicídio, em 1940, Benjamin agarrava-se desesperadamente à sua mala: nela estaria um manuscrito “mais importante que a vida” e do qual, depois de sua morte, jamais se teve notícia.
Aqui cabe um parêntese: ao cultuar as miniaturas, portáteis por definição, os shandy ocultam, diz o narrador. Ao ocultar, ocultam-se até o desaparecimento, como o personagem-título de “Doutor Pasavento” (2005), o que ecoa mais uma definição de shandy, acróstico perfeito em espanhol: Si Hablas Alto Nunca Digas Yo.
Também do universo de Marcel Duchamp vem o conceito das máquinas celibatárias (ou solteiras): o shandy é solteiro no sentido amplo, radicalmente individualista e sem amarras de qualquer tipo, errando pelo mundo em constante exílio, como o Walter Benjamin em eterna crise conjugal, entre Moscou, Ibiza, Berlim, Marselha e Paris ao sabor de amores impossíveis e fracassados. São ainda marcas dos shandy, segundo seu principal historiador, “espírito inovador, extrema sexualidade, ausência de grandes propósitos, nomadismo incansável, tensa convivência com a figura do duplo, simpatia pela negritude, cultivo da arte da insolência”.
A conspiração shandy cria uma geografia idiossincrática fundamental para seu desenvolvimento. As reuniões acontecem entre Zurique, Trieste, Praga, Viena, Paris, Córsega, Sevilha e Bretanha depois de sua fundação em Port Atif, este último um “povoado africano situado na desembocadura do rio Níger” cujo nome deriva de portatif, “portátil” em francês. É inútil buscar nos mapas o lugar shandy por excelência, bem como caçar na Wikipedia detalhes da vida de, por exemplo, Rita Malú, ilustre shandy. Aqui e em todos os livros seguintes, o autor dissolve com cuidado qualquer fronteira entre as narrativas históricas e fabuladas, entre a autobiografia e a impostura. E o faz menos pela óbvia conclusão de que “tudo é ficção” do que para criar uma dúvida que se instala permanentemente entre ele e seus leitores.
Em entrevista a seu tradutor francês, André Gabastou, Vila-Matas diverte-se contando que, logo depois da publicação da “História abreviada”, um intelectual encomendou a uma livraria de Barcelona toda a bibliografia citada por ele — e formada, claro, por títulos reais e inventados. A mesma onda se espraia por toda a sua obra: a Marguerite Duras atribui-se uma frase que foi a ela atribuída por Vila-Matas; é corrente ainda uma citação dos diários de Kafka “reescrita” e deformada por Vila-Matas. “Pode parecer paradoxal, mas sempre busquei minha originalidade de escritor na assimilação de outras vozes”, disse o autor de “Dublinesca” (2010, a ser lançado em maio no Brasil pela Cosac Naify) numa conferência proferida no México, em 2008. “As ideias e as frases assumem um outro sentido quando elas são comentadas, ligeiramente retocadas, reinseridas em um contexto insólito”. 

Num dado momento, por exemplo, o narrador cita “O surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia”, um dos mais notáveis ensaios de Walter Benjamin, de 1929. As aspas que usa, é claro, não estão no texto de Benjamin, mas o texto de Benjamin é pilhado o tempo todo por Vila-Matas: dali saem personagens, situações, raciocínios, clima e até o estilo: “há sempre um instante em tais movimentos em que a tensão original da sociedade secreta precisa explodir numa luta material e profana pelo poder pela hegemonia, ou fragmentar-se e transformar-se enquanto manifestação pública”. A citação, em tempo, é mesmo de Benjamin (em tradução de Sergio Paulo Rouanet) mas caberia perfeitamente na retórica do seriíssimo narrador de Vila-Matas.

A “História abreviada da literatura portátil”, que se desdobra num blog criado pelo autor, poderia, como se vê, ser um ensaio e, seus personagens, as referências bibliográficas. Mas Vila-Matas, qual um sofredor do “Mal de Montano” (2002), aquele que impede a distinção entre vida e literatura, faz da argumentação uma trama e das notas de pé de página, pessoas. Por isso, não é difícil que o censurem por uma literatura extremamente cerebral. Mas há a hipótese, esta mais estimulante, de que o movimento é precisamente o contrário da racionalização: em sua obra, as ideias é que ganham carne e sangue. O que, no final das contas, ainda seria impreciso, pois no centro deste universo literário está a impossibilidade radical de estabelecer hierarquias entre real e imaginado ou distinguir com segurança o vivido do escrito — um ideal romântico que ganha assustadora materialidade na obra do escritor catalão.

PAULO ROBERTO PIRES é professor da Escola de Comunicação da UFRJ e editor da revista “serrote”

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