sexta-feira, 2 de maio de 2014

Uma leitura do contemporâneo

O escritor e mestre em literatura comparada Gustavo Czekster reflete sobre a literatura contemporânea em sua coluna no portal Literatortura. Segue o texto de Gustavo.
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Por uma literatura mais feia



Rimel Neffati
Por ossos do ofício, estou lendo muita literatura contemporânea. Não tem sido uma experiência agradável. Quanto mais leio a produção atual, mais retorno aos clássicos. Sinto saudade quase física de ler uma obra que não esteja submetida às normas das políticas editoriais e do lucro fácil. Vontade de ler literatura, e não livros.
Estou cansado de livros bonitos. Sim, é sério. Livros com capas lindas, com editorações fantásticas, com letras e recursos gráficos que são dignos de figurarem em galerias de arte. Em alguns momentos, os recursos são tão fantásticos que chego a me desconcentrar da história. E se existe algo trágico que aprendi é que, quanto mais bonito o livro, mais frágil e inconstante é a sua trama. Se eu quisesse ver uma escultura ou uma pintura, iria a um museu, e não compraria um livro, mas respeito quem mata dois coelhos com uma única cajadada estética.
Se a beleza se limitasse às produções gráficas, seria algo possível de se sobreviver. Sei que as editoras precisam atrair leitores, e fazer capas maravilhosas é parte desta sedução. Não sou tão ingênuo a ponto de achar que a literatura se sustenta sem o mercado e suas tarefas árduas de fascinar e encantar consumidores.
O que me causa desconforto é que os livros também possuem conteúdos lindos: as histórias são perfeitas, milimetricamente corrigidas e irretocáveis. Quem sabe técnica literária ou teoria consegue ver com clareza as escolhas narrativas do autor, o motivo da personagem principal ser uma criança ou um rapaz da classe média, a razão do tempo da narrativa ser no presente ou no futuro, a escolha do cenário urbano ou rural. São livros que não mexem com o leitor e o respeitam, talvez até demais. Ler também é ser desafiado pelo autor e pela visão do mundo que ele descreve, e os livros atuais evitam confrontar o leitor, como se ele fosse feito de cristal. São obras que morrem de medo do público, temendo que ele se desconcentre em alguma linha, em alguma troca de parágrafo, em algum desagrado com o fim abrupto de uma frase.
Então chegamos no pior problema de todos. Eu chamo de preguiça autoral, mas pode ser considerado como uma espécie de covardia. Os escritores tecem narrativas burocráticas e sem grandes novidades criativas. Entre contar a história que querem e aquela que o mercado deseja, optam pela segunda alternativa e se acomodam. Suas tramas são perfeitas e edificantes; impossível chegar ao final de um livro sem que alguma lição de vida não encha nossos olhos de lágrimas. Lembrando daquilo que falou sobre catarse e epifania, Aristóteles levantaria para aplaudir de pé, sem sufocar os soluços. As histórias são lindas, e qualquer ser humano se sentiria mais elevado por experimentar sentimentos tão dignos.
No entanto, isto não é arte. O que está matando a literatura contemporânea é a beleza. O excesso de beleza transforma o mundo todo em um local anódino e sem sentimentos. De tanto tentar agradar o público com uma overdose estética representada pelo aspecto físico do livro, acrescido de construções técnicas nada ousadas e de tramas superficiais, os livros estão todos iguais e sem alma. Facilmente esquecíveis. São cascas desprovidas de essência, e não existe nada mais irritante do que ler uma história em que se percebe que o autor estava mais preocupado com as susceptibilidades do leitor do que com a sua trama.
Nietzsche abordou este tema, quando, discorrendo sobre a arte da alma feia, escreveu: “Traça-se à arte limites muito estreitos, se se exige que nela só se possa exprimir a alma ordenada, moralmente equilibrada. Como nas artes plásticas, assim também na música e na poesia há uma arte da alma feia, ao lado das belas almas; e os efeitos mais poderosos da arte, quebrar as almas, mover as pedras e transformar os animais em homens, talvez tenha sido precisamente essa arte que mais os conseguiu”.
A literatura não foi feita para ser bonita. A arte necessita do feio, do desagradável, do grotesco, do repugnante, do malfeito. A beleza eleva o espírito, mas a feiura nos fala a verdade. Qualquer um pode escrever um livro lindo, mas poucos conseguem fazer um livro feio e verdadeiro. Talvez por desconhecimento de conceitos básicos, alguns autores buscam o feio da forma mais primária possível, qual seja, tratar de temas revoltantes e de fácil apelo popular, encher as obras de palavrões e descrições chulas de sexo ou distorcer a linguagem com a utilização de termos usados no dia a dia. A simples ideia de usar imagens ou itens feios para fazer uma “arte feia” envolve uma estilização do próprio conceito de beleza e, pior ainda, um viés muito pessoal daquilo que o autor pensa ser feio. Toda vez que leio obras que tentam abordar temas considerados feios me passa a desagradável impressão de que, ao tentar transformar o feio em arte, ele se torna esteticamente apreciável e, por conseguinte, falso como uma nota de três reais.
A literatura feia não trata de assuntos feios. É fiel à sua trama e à visão de mundo do autor; ela desconsidera o leitor, quer afundar as mãos na realidade e mostrar a angústia que se esconde atrás da fricção de cada átomo que forma o mundo. Charles Baudelaire é horrível; os poemas dele são detestáveis e, por isto mesmo, inesquecíveis e brilhantes. Choderlos de Lactos escreveu um livro abominável, colocando toda a podridão da alma humana atrás de adjetivos e cenários de extrema beleza. William Faulkner possui uma linguagem irritante, mas, quando a compreensão falha, alguma corda desconhecida no mais fundo do leitor consegue decodificar aquele amontoado de letras e uma sinfonia poderosa surge no meio do deserto.
Os escritores (e o mercado) superestimam o leitor, dando-lhe mais importância e carinho do que ele merece. O leitor não sabe o que quer; prova disto é que boa parte das maiores obras de arte só foram reconhecidas depois da morte do seu criador. O autor nunca pode afastar o olho da sua trama, não pode deixar ela escapar, por mais sedutores que sejam os gritos e chamados dos leitores que lhe cercam. A literatura feia é aquela que não dá atenção alguma para o leitor: ela não é César entrando em Roma em triunfo, coroa de louros sobre a cabeça, recebendo aplausos e gritos de júbilo; a verdadeira literatura é o anônimo centurião que, sujo de barro e de sangue dos inimigos, arranca a cabeça do rei adversário com um golpe do gládio e, com este gesto, vence a guerra inteira.

2 comentários:

  1. GUSTAVO, apreciei muito o teu comentário, corajoso, informado e lúcido. Gostaria muito de vê-lo discutido em, público. E receio que a literatura contemporânea, mais do que contentar ao público, joga para ele (para usar um termo de agora). Joga com o que conhece, e isso dizes muito bem, Não acho que seja o belo e o feio o conflito central: ele vai mais fundo e abrange a concepção de arte. Vamos experimentar opor arte (com o sentido de permanência per saeculum ao de instalação, efeito imediato no espectador. Acho que é mais ou menos por aí. E estou de acordo com muito do que dizes...

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  2. Gustavo, tem uns errinhos ridículos de vírgula e preposição dissociada, não deu tempo de eu revisar essa instalação...

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