segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Barreira, de Amílcar Bettega - dia 9 de agosto

Dia 9 de agosto, próximo sábado, teremos o encontro sobre o romance Barreira, de Amílcar Bettega. O seminário será apresentado pela Prof. Dra. Léa Masina.
Como preparação para o encontro, segue trecho do romance (publicado no jornal Rascunho)

Ilustração: Theo Szczepanski
Ilustração: Theo Szczepanski

Veja, e seu braço fez um movimento lento, longo, foi distendendo-se pouco a pouco como se do ombro partisse uma onda que despertava as articulações do cotovelo, passava pelo antebraço, o punho, a mão, o dedo, e orientava ossos e músculos na direção de uma linha fluida e mais ou menos horizontal apontando para um janelão que logo após o movimento brusco da webcam passou a ocupar a tela inteira do meu computador, um retângulo escuro recortado contra a parede branca e compondo uma imagem granulosa, completamente irreal com suas cores saturadas e contornos distorcidos onde eu deveria ver, em tempo real, a cidade que ela descobria, a cidade escondida durante tanto tempo em histórias que um dia existiram somente para dar corpo e sentido a um passado que eu acreditava digno desse nome, estanque, ainda capaz de formar uma referência, de se colar a uma identidade e mendigar-lhe um traçozinho de caráter ou da fisionomia, mas nada mais do que isso, nada mais do que uma memória postiça, esta sopa de lembranças voláteis, algumas fotografias em preto e branco e nomes de sonoridade e grafia bizarras, tudo requentado pelos relatos ora mais ora menos inventivos de alguém mais velho e repetidos à exaustão nas reuniões de família até virarem uma lenda, como são, aliás, todos os passados, veja, ela repetiu, logo depois dessas luzes fica o Haliç, e ela dizia alitch se esforçando para fazer passar por natural a pronúncia carregada e bem típica de um aluno em suas primeiras aulas de turco, e depois ainda, ela continuou, na outra margem, ficam Balat e Fener, hoje à tarde fui até lá, caminhei muito, caminhei com o único objetivo de me sentir ali, de me sentir pisando aquelas ruelas, de sentir que meu corpo habitava um espaço que até então era apenas um nome, um sonho ou uma imaginação, veja, ela insistiu, veja como tudo é quase palpável daqui, de repente um monte de imagens que me eram familiares se materializam na minha frente sem que eu as reconheça como aquelas imagens tão familiares, acho que foi por isso que fiz muitas fotos, não que quisesse, como dizem, apreender o momento para eternizá-lo, se uma foto serve para alguma coisa o certo é que não é para isso, o que eu sentia ali era a necessidade de ao menos tentar olhar de fora para aquilo que eu estava vendo de dentro, talvez eu quisesse me proteger, é bem possível, mas eu sei que todas as vezes que eu olhar de novo para cada uma dessas fotos o que eu vou ver sou eu mesma, como se eu estivesse não atrás mas diante da câmera, veja, veja, ainda a ouvi dizer outra e muitas vezes, mas eu não via nada, apenas o retângulo escuro de uma janela dando para o nada, através da qual eu não via nada, onde eu não conseguia, apesar de todos os esforços possíveis, reconhecer o que quer que fosse simplesmente porque não há como reconhecer algo que já não existe ou, melhor ainda, não há como ver de novo o que foi visto por alguém que não existe mais, não, eu não posso ver nada, eu queria lhe dizer, não adianta, não vejo nada, eu queria de uma vez por todas fazê-la entender isso, mas me calava diante do entusiasmo expresso na voz que me chegava um tanto metálica e desfigurada pela má qualidade dos alto-falantes, me calava diante do movimento desse braço, evasivo e suspenso no instantâneo de uma imagem truncada pela conexão instável, um movimento que parecia continuar ainda, mesmo agora e sempre, como se o braço não cessasse nunca de se distender, lenta e longamente, ombro, cotovelo, antebraço, punho, mão, dedo, e ainda depois do dedo, no prolongamento do gesto que insistia em avançar para além do retângulo escuro, para dentro de alguma coisa que deveria mover-se também, naquele exato instante, no outro lado da janela, não, eu não via nada, mas o simples pensamento de que poderia haver alguma coisa depois daquela janela, que no interior da escuridão estampada na tela do meu computador uma cidade pudesse se esconder, este simples pensamento me trouxe uma vertigem e a necessidade de correr até a janela da pequena peça que me servia de escritório e ver, com imenso alívio, que o sol morria docemente atrás das palmeiras da Oswaldo Aranha, que os ônibus cruzavam a avenida com o mesmo estrépito que sempre fizera as vidraças tremerem em seus caixilhos, que uma massa verde e cheia de reflexos se estendia sob meus olhos lá embaixo e que era esta a vista que eu preferia da minha cidade, o parque da Redenção margeado pela Oswaldo Aranha de um lado e a João Pessoa de outro, o sol de inverno descendo obliquamente por entre as folhas das árvores e a certeza de que atrás da cadeia de prédios à minha direita o Guaíba corria silencioso e quase despercebido rente aos muros da Mauá, contornava a ponta do Gasômetro e ia compor, na altura do Beira-Rio e com esse mesmo sol descendo sobre as palmeiras, o cartão-postal por excelência de Porto Alegre, era isso que eu via, um cartão-postal, e isso me bastava, não precisava de outra imagem para perceber a minha cidade e tampouco para descrevê-la, aliás nunca precisei descrever ou contar Porto Alegre como tantas vezes fizera com Istambul diante de uma Fátima muito concentrada e seguindo sabe-se lá com qual imagem na cabeça cada rua mencionada, cada descrição de um bairro, de um mercado, de mercearias, armarinhos, de todos os lugares por onde um dia meu pai me levou puxando-me pela mão enquanto despejava detalhes sobre a época das construções, os movimentos migratórios, a formação dos bairros e a fundação das lojas de comércio pelas quais passávamos e onde ele parava para tomar um chá com o proprietário, cuja história, a da sua família e a do seu estabelecimento, ele começava a contar logo após ter acabado o chá e se despedido do seu interlocutor, era quando nos púnhamos em marcha outra vez, ganhávamos as ruas e então os sons da cidade misturavam-se ao da sua voz, abafavam-na por vezes, sobrepunham-se a ela com o nervosismo típico dos ruídos urbanos, mas sem que eu cessasse jamais de ouvi-la e de me deixar guiar por ela e pelo fluxo confuso de relatos que a bem da verdade não me interessavam muito, ou melhor, não era propriamente a suposta sucessão de acontecimentos que prendia a minha atenção, no fundo as histórias não tinham nem um encadeamento nem um fim muito precisos e emendavam-se na história do outro conhecido com quem cruzávamos logo adiante, misturavam-se nomes e datas numa só torrente de informações que a mim sempre pareceram pertencentes a um mundo que não dizia respeito ao Ibo que eu era, alheio a tudo que não fizesse parte do pequeno universo cotidiano dos seus brinquedos e protegido por essa bolha concentrada de presente que a gente chama de infância, onde as distâncias físicas ou temporais são sempre grandes demais para nos vincular a algo que não está logo ali ao alcance dos sentidos, e o que ele, Ibo, via e podia sentir não estava no que era contado, mas na voz que contava e em sua capacidade para avançar sempre e sempre como se tomada por uma engenharia complexa cujo movimento gerava o combustível necessário para a manutenção do próprio movimento, para a sua extensão, para o seu prolongamento, um pouco como o movimento do braço de Fátima que eu via agora, suspenso e fluido, ampliando o espaço para muito além da sua extremidade física, dotando-se de uma força que a partir de determinado momento parece se desvincular do impulso inicial, deixa de ser esforço ou intenção e torna-se autônoma, entregue ao simples desejo de continuar (o gesto), de continuar a falar através do gesto (veja), de continuar a contar (a voz) e a empilhar detalhes em cima de detalhes numa urgência que o discurso caudaloso tornava evidente, como se ele (o pai) soubesse que um dia tudo aquilo iria desaparecer e como se eu (o filho) tivesse que tudo apreender de uma só vez, como se fosse preciso fixar cada rua, cada esquina, prédio, fachada, poste, calçada, placa, semáforo, cada pedra, cada elemento material que compunha a cidade, mas também cada ruído, cada cheiro, cada luz, cada tom de cor, cada molécula da cidade para estabelecer o mapa definitivo e particular desta (outra) cidade que então poderíamos percorrer, e não apenas com os pés mas também com os ouvidos, olhos e todos os sentidos, onde quer que estivéssemos, onde quer que nos encontrássemos mais tarde, após o desaparecimento, porque no fundo era isso, sim, era isso o que no fundo estava sendo contado, quando agora olho para trás e vejo Ibo em meio à multidão que desce das barcas em Eminönü, de mão com seu pai que aponta para a ponte Galata e lhe diz alguma coisa antes de atravessarem a rua e caminharem entre os pombos que disputam restos de comida, cascas de pistache e farelos de milho espalhados pelo amplo espaço lajeado à frente da Mesquita Nova, quando os vejo contornarem o Bazar Egípcio, enveredar-se por uma ruela estreita onde, segundo o pai, é possível encontrar o peixe mais fresco da cidade, que eles levarão enrolado num papel parecido com os que os vendedores ambulantes de simits utilizam e que colecionávamos com zelo recortando-os em quadrados de quatro por quatro centímetros e colando-os num caderno onde ele anotava o dia, a hora e o local onde tínhamos comprado aquele simit, papéis cuja textura macia e delicadeza dos desenhos formavam mais um mapa para a cidade que percorríamos, um mapa codificado, fechado aos outros mas que se abria a nós numa série de conexões que se deflagravam ao simples toque ou olhar e que podiam nos levar de novo e quantas vezes quiséssemos a um ponto preciso da cidade, qualquer um, por exemplo aquele em que agora eles se encontravam não tocando o papel sedoso e colorido dos simits, mas sentindo nas mãos a textura mais áspera deste outro tipo de papel, mais espesso e suficientemente resistente para manter-lhes as mãos secas durante o trajeto de volta até o apartamento em Kasımpaşa que os receberá em sua sala escura onde eles vão se sentar e ler alguma coisa juntos enquanto a mãe limpa o peixe e prepara o almoço de domingo, quando agora olho para esse menino entre seis e sete anos de joelhos sobre a cadeira e lendo com uma destreza ainda cambaleante as frases que o dedo do pai vai lhe indicando ao longo da página como se as puxasse, como se as inventasse ali mesmo, sobre a página e no momento em que pronuncia a primeira sílaba da palavra e espera que Ibo a complete, quando tento decifrar o que dizem essas palavras, o que contam essas frases, do que trata o livro aberto em cima da mesa, não consigo construir uma imagem que vá além dessa sala escura, dessa mesa, do livro aberto e desse dedo acompanhando a leitura, já que o menino entre seis e sete anos é ainda incapaz de percorrer uma cidade ou as linhas impressas nas páginas de um livro sem a ajuda de um adulto, sem que este lhe empreste seus passos e seus olhos e lhe revele o que ele ainda não pode decifrar, traduzir, ler, ver ou seja qual for a palavra que se queira usar para falar do sentido que pode ter para alguém o que se apresenta diante de seus olhos, por isso quando vejo os olhos vidrados daquele homem segurando com uma firmeza maior do que a de costume a mão do pequeno Ibo, parados os dois diante do cordão de isolamento que os separa de uma montanha de vigas tombadas, paredes desmoronadas, lajes inteiras desabadas num amontoado caótico de pedaços de concreto e ferros retorcidos, e panos, couros, plásticos, vidros, pedras de bijuterias, correntes, colares e uma quantidade infinita de outros materiais, todos fundidos e carbonizados e formando uma montanha negra de destroços e cinzas que exalam um cheiro muito forte e mandam para o ar uma fumaça que cinco dias mais tarde e mesmo com o fogo já extinto continuará a subir no céu de Istambul, quando percebo que nesse preciso instante aquela voz, que era já uma espécie de respiração ou batimento cardíaco, algo já incorporado ao meu interior e fazendo parte da minha existência, quando percebo que aquela voz está agora calada, que o que parecia não se interromper jamais está agora em suspenso e como que à espera de uma tragédia ainda maior, quando a fumaça e o cheiro de queimado realçam com uma nitidez impressionante, dir-se-ia material, o silêncio absoluto em que todos os que se aglomeram junto ao cordão de isolamento estão mergulhados, um silêncio pontuado apenas e de vez em quando pelos estalidos da madeira que ainda queima sem chamas no interior das cinzas e pelo som surdo do movimento dos bombeiros arrastando seus pés e pás e bastões e toda uma parafernália de instrumentos em meio a uma camada de pó escurecido que lhes sobe até o cano das botas em busca de algum sobrevivente, quando no desamparo desse silêncio quase religioso eu olho para meu pai e vejo em seus olhos o reflexo do que está diante de nós, é somente aí, muito depois de que tudo aconteceu, que compreendo a urgência daquele relato imposto a Ibo em suas perambulações pela cidade inteira, inconsciente e premonitoriamente era o relato de um desaparecimento que corria sob aquela torrente de palavras, o desaparecimento de uma geografia, uma história, uma língua, uma cidade inteira que deixa de existir, que será substituída por outra sem que o vácuo da sua morte seja preenchido por alguma coisa diferente e mais construtiva do que este sentimento de ausência um tanto patético que mais tarde se imprimiu aos meus relatos e às descrições de Istambul que eu fazia a uma Fátima muito concentrada, movido eu também por uma urgência indisfarçável e certo compromisso com a transmissão de algo de que bem ou mal eu era o depositário vivo, porém a grande diferença era que eu lhe falava quando tudo já havia desaparecido, quando já não era possível experimentar uma familiaridade com o que estava sendo contado capaz de tornar o relato e o desejo de relatar autênticos, porque evidentemente não era para ela que eu falava, não era para ela que eu descrevia Istambul, ela me escutava, claro, muito concentrada e formando para si sabe-se lá qual imagem da cidade, mas deveria saber que não era para ela que eu falava, não, Fátima, não é para você que eu conto tudo isso, não é você que precisa inventar o passado para justificar o que você é agora, não, Fátima, você não podia saber que não era para você, você era apenas uma criança e para uma criança tudo é presente e realidade, quando eu lhe falava de Istambul já não havia uma Istambul real, por mais que eu a buscasse só o que conseguia era repetir os clichês petrificados dos livros de história e dos relatos de viagens transbordantes de exotismo fácil, muito cedo entendi que jamais poderia reproduzir para você a verdade daquela voz que, mesmo sem fugir do pitoresco que com o tempo se cola inevitavelmente a todas as histórias muitas vezes repetidas, me falava, uma voz que me tocava a ponto de eu ainda hoje lembrar do que ela contava, o episódio da tomada de Constantinopla pelos otomanos, por exemplo, e o sultão Mehmet ii entrando a cavalo na basílica de Santa Sofia, o detalhe da camada de sangue sobre o mármore do piso na qual as patas do cavalo chapinhavam ao cruzar por entre corpos de cadáveres empilhados junto às paredes cobertas de mosaicos bizantinos, pois eu posso lembrar, e lembro, de cada detalhe dessa história contada ali mesmo dentro da Santa Sofia, mas sou incapaz de reconhecer uma só fotografia do seu interior que fuja do ângulo clássico em que se vê, de baixo para cima, a magnífica cúpula levitando sobre uma coroa de arcos e como que suspensa pela luz que invade suas janelas, não consigo reconhecer um só detalhe que não seja um desses tantos reproduzidos com obstinação nos folhetos turísticos, guias de viagem ou documentários sobre as belezas arquitetônicas de Istambul, lembro do que ouvia e não do que via, lembro que ouvia e não que via, assim como agora ouço e não vejo você dizer veja, veja a Mesquita Nova e as de Süleymaniye e de Beyazıt iluminadas, veja as barcas que cruzam o Bósforo dia e noite, veja as luzes de Eyüp mais à direita, veja no outro lado a Mesquita Azul com seus imensos minaretes, veja a Santa Sofia e o Palácio de Topkapı, eu ouço você repetir veja, veja, veja, mas desconverso e pergunto se já é tarde, nunca sei quantas horas são de diferença, Fátima, e ela confirma, é tarde, é muito tarde, mas ainda dá para ver, veja, e eu digo não, ela não entende, mas eu não vejo nada além do movimento do seu braço, mesmo que ele já não apareça mais na tela do computador e agora sejam, o braço e ela própria, apenas a continuação do seu gesto, é esse movimento que vejo e essa voz que ouço, como se um e outro fossem inseparáveis, veja, e seu braço foi se distendendo pouco a pouco como que despertando de um sono ancestral, espreguiçando-se, ombro, cotovelo, antebraço, punho, mão, dedo, e ainda depois, à frente, abrindo espaço à frente com essa voz que insiste, veja, veja, meu pai, veja.
Foi a última vez que vi a minha filha.

AMILCAR BETTEGA
Nasceu em São Gabriel (RS), em 1964. É autor, entre outros, de O voo da trapezista (1994) e Os lados do círculo (2004). Barreira, seu primeiro romance, será lançado em agosto pela Companhia das Letras. Vive em Lisboa, Portugal.

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