segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Luiz Ruffato e as impossibilidades de narrar*


Da impossibilidade de narrar

Luiz Ruffato


Sou do Brasil, um país do Terceiro Mundo, situado na periferia do capitalismo, uma nação ancorada na violência: violência contra os índios, dizimados nos primeiros tempos do achamento; violência contra os negros, escravizados e desterrados para sempre; violência contra os miseráveis europeus e japoneses, que  lá aportavam, um oceano a separá-los  definitivamente de seus antepassados; violência contra os  nordestinos e mineiros, mão-de-obra barata acantonada em cortiços e favelas.
Venho de São Paulo, o sexto maior aglomerado urbano do planeta, com cerca de 20 milhões de habitantes. Uma metrópole onde a segunda maior frota de helicópteros particulares do mundo sobrevoa ônibus, trens e
metrôs que desovam trabalhadores em estações superlotadas; traficantes ricos instalados em suas mansões lêem nos jornais notícias sobre traficantes pobres perseguidos pela polícia corrupta e violenta; políticos roubam a nível municipal, estadual e federal; as vitrines dos restaurantes chiques refletem os esfomeados, os esfarrapados; rios apodrecem em esgoto, lama, veneno; favelas enlaçam prédios futuristas; universidades de excelência alimentam a próxima elite política e econômica, enquanto na periferia escolas cuniversidades de excelência alimentam a próxima elite política e econômica, enquanto na  periferia escolas com professores mal remunerados, mal formados e mal protegidos geram os novos assalariados; a mais avançada tecnologia médica da América Latina assiste, impassível, à fila dos condenados à morte: homens vítimas da violência, mulheres vítimas de complicações do parto, homens e mulheres vítimas da tuberculose, crianças vítimas da diarréia; muros escondem a vida miúda que escorre lá fora.
E São Paulo é isso, canaã adubado pelo suor indígena, negro, mestiço, imigrante - mais da metade de sua população carrega sobrenomes italianos, e descendentes de portugueses, espanhóis, árabes, judeus, armênios, lituanos, japoneses, chineses, coreanos, bolivianos e de mais cinqüenta outras nacionalidades espalham-se por avenidas,  ruas e becos.
Como transpor o caos dessa cidade para as páginas de um livro?
Penso queo ficcionista deveria ser assim uma espécie de físico que ausculta a Natureza para tentar compreender o mecanismo de funcionamento do Universo. Cada passo na direção deste conhecimento resulta em mudanças significativas em sua concepção do mundo e, portanto, em uma imediata necessidade de elaborar novos instrumentos para continuar a busca.
O objeto de estudo do romancista é o Ser Humano mergulhado no Mundo. E, assim como a Natureza, o Ser Humano permanece indevassável  - o que temos são descrições, umas mais, outras menos, felizes, da vida em determinados períodos históricos. Também como o físico, o ficcionista, na medida em que mudam as condições objetivas, sente necessidade de criar ferramentas de prospecção para aproximar-se da natureza humana, muitas vezes absorvendo avanços de outras áreas do conhecimento.
Nós, herdeiros e tributários do Século XX, vivenciamos na pele imensas mudanças: Einstein e Heisenberg desconstruíram nossa intuição de tempo e de espaço; Freud e Lacan desarrumaram a nossa autopercepção; Marx e Ford dinamitaram os fundamentos do antigo mundo do trabalho, afetando diretamente nosso dia a dia; o nazismo restituiu-nos à nossa barbárie; Baudelaire e Poe, via Benjamin, apresentaram-nos o Homem na multidão  - e vieram Kafka, Proust, Pirandello, Joyce, Faulkner, Breton, o noveau roman, o Oulipo...
Agora, o Século XXI descortina-se às nossas incertezas:  a teoria das  supercordas, a neurociência, a robótica industrial, a internet, as megalópoles...
Ora, se os acontecimentos externos podem modificar nossa constituição de seres humanos (por exemplo, a crise do emprego formal que abala nossa segurança psicológica), então devemos admitir que somos obrigados a idear novas formas de compreendermo-nos imersos neste mundo repleto de múltiplas significâncias. Continuar pensando o romance como  uma ação transcorrida dentro de um espaço e num determinado tempo, e que pretende ser o relato autêntico de experiências  individuais verdadeiras, passa a ser, no mínimo, anacrônico.
Pois, vejamos. A desigualdade econômica, que contamina e necrosa o tecido social, imiscui-se na própria natureza humana. O tempo e o espaço, por exemplo, são absorvidos de maneira diferente se lidamos com alguém que habita o conforto de uma mansão num bairro rico ou a pestilenta emanação dos esgotos de uma favela. Porque o tempo é elástico para uns, que dispõem de veículos que se deslocam rápido pelas ruas e avenidas, enquanto para outros o tempo é comprimido em vagões de trens entupidos de gente, ou semi-estático nos intermináveis engarrafamentos. E se o espaço de uns é infinito, pois destinos distantes como os Estados Unidos ou a Europa alcançam em algumas horas, para outros ele é apenas o lugar que o corpo ocupa.
Além disso, quando uma pessoa deixa seu torrão natal, e essa é sempre uma decisão tomada em último caso, quando já não resta absolutamente nenhuma outra opção, ela é obrigada a abandonar não apenas o idioma, os costumes, as paisagens, mas, mais que tudo, os ossos de seus entes queridos, ou seja, o signo que indica que ela pertence a um lugar, a uma família, que possui, enfim, um passado. Quando assentado em outro sítio, o imigrante tem que inventar-se a partir do nada, inaugurando-se dia a dia. Como construir relatos de caráter biográfico se lidamos com personagens sem história?
Esses os dilemas que enfrentei quando me pus a refletir sobre como tornar a cidade de São Paulo um espaço ficcional, como trazer para as páginas de um livro toda a sua complexidade. Lembrei-me então de uma instalação de artes plásticas, exposta nexposta na Bienal Internacional de Artes de São Paulo de 1996 (“Ritos de Passagem”, de  Roberto Evangelista):  centenas de calçados usados, masculinos e femininos, de adultos e de crianças, tênis e sapatos, chinelos-de-dedo e pantufas, botas e sandálias, sapatinhos de
crochê e coturnos, coaoticamente amontoados a um canto... Cada um deles trazia impressa a história dos pés que os usaram, impregnados pela sujidade dos caminhos percorridos. A partir desta iluminação, percebi que ao invés de tentar organizar o caos - que mais ou menos o romance tradicional objetiva  - tinha que simplesmente incorporá-lo ao procedimento ficcional: deixar meu corpo exposto  aos cheiros, às vozes, às cores, aos gostos, aos esbarrões da megalópole, transformar as sensações coletivas em memória
individual. Flanar por ponto de ônibus e velórios, locais onde houve chacinas e supermercados, templos evangélicos e conjuntos habitacionais populares, favelas e prisões, hospitais e bares, estádios de futebol e academias de boxe, mansões e hotéis, fábricas e lojas, shopping centers e escolas, restaurantes e motéis, botequins e trens...
Recolher do lixo livros e eletrodomésticos, brinquedos e cardápios,  santinhos e Recolher do lixo livros e eletrodomésticos, brinquedos e cardápios,  santinhos e calendários,  jornais velhos e  velhas fotografias, anúncios de simpatias e de resolução de problemas financeiros...
Compreender que o tempo em São Paulo não é paulatino e seqüencial, mas sucessivo e simultâneo. Assumir a fragmentação como técnica (as histórias compondo a História) e a precariedade como sintoma - a precária arquitetura do romance, a precária  arquitetura do espaço urbano.
A violência da invisibilidade, a violência do não-pertencimento, a violência de quem tem que construir uma subjetividade num mundo que  nos quer  homogeneamente anônimos. A impossibilidade de narrar: cadernos escolares, emissões radiofônicas, diálogos entreouvidos, crônica policial, contos, poemas, notícias de jornais, classificados, descrições insípidas, recursos da alta tecnologia (mensagens no celular, páginas de relacionamento na internet), discursos religiosos, colagens, cartas... Tudo: cinema, televisão, literatura, artes plásticas, música, teatro... Uma “instalação literária”...
E a linguagem acompanha essa turbulência  – não a composição, mas a decomposição.
A cidade - cicatrizes que mapeiam meu corpo.



*Palestra do escritor Luiz Ruffato para o Conexões Itaú Cultural

2 comentários:

  1. Passamos por um dos períodos de maiores mudanças para a humanidade. O movimento das populações em relação ao fluxo do capital, a desintegração da família e o desmonte da sociedade agrária. São Paulo, vinte milhões de habitantes, delinqüência, famílias desfeitas, crianças nas ruas. A civilização está desmoronando? Se isto é verdadeiro, Rufatto é mais um dos que se propõem a documentar a devastação dos mecanismos sociais e econômicos.
    Eles eram muitos cavalos vem com manual de instruções. Basta um pouquinho de esforço e alguns cliques no Google e lá temos o autor explicando o que quis dizer com aquilo. Invisibilidade, não-pertencimento=violência. Pois é. Anonimato, redoma, cidade como personagem, tudo isso com uns toques de realismo aqui, um juntar de cacos ali, mistura-se tudo: lista, bilhete, marginalidade, costura-se tudo encadeando setenta textos, diz-se que é romance, conto, crônica, e temos... literatura.. Ou será “instalação literária”, como propõe o autor em palestra para o Conexões Itaú Cultural? Anônimos tem vitrine que os separa do resto do mundo. Como se houvesse uma redoma onde se enclausurassem os famosos, os endinheirados e o resto da população gravitando ao redor, querendo fazer parte do clube. Volta e meia algum do lado de fora é alçado aos holofotes, via big brothers da vida e a mesmice que parecia ser a sua vida ganha destaque. Coisas que antes pareciam comuns, banais, adquirem glamour momentâneo e são compartilhadas avidamente pelo resto da massa e pronto. Anos atrás, vimos numa capa de revista nacional a foto de um helicóptero sobrevoando uma favela de São Paulo. Após a terceira volta no mesmo local, a população segurava uma faixa lá embaixo e nela estava escrito: — oi, Rede Globo! A massa humana teima contra a distância até as nossas casas. É a luta contra a invisibilidade.
    Os helicópteros parecem ser a figura usada por Ruffato para “enquadrar” a massa compacta lá embaixo que se amalgamou à cidade-personagem. Os helicópteros representam também o tempo, curto para alguns, comprimido para outros nos vagões cheios de gente. O tempo, aliás, único elo entre os personagens. De vez em quando o tempo pára e se olha para um pontinho na multidão, pinçado daquela realidade. Gente é assim mesmo, incoerente. Porque o feio, o doloroso – para os outros – nos mata de curiosidade? Será que é um lado perverso, escondido, que aflora quando menos esperamos? Se não absorvermos a obra como literatura experimental, fragmentária, desconstruída e simbolizando ficcionalmente o caos, corremos o risco de esquecer que somos cavalos, estrangeiros no mesmo país que ajudamos a construir. E a série de setenta textos será apenas uma fileira de misérias, banalidades e violência exposta em praça pública da mesma forma que o fazem os noticiários policiais e as TVs ligadas enquanto se toca a vida.
    Somos todos cavalos, sim. Uma forma que suporta, ouve, ressoa tudo que vem de fora e de cima. E estamos nos acostumando demais, achando tudo natural demais, trivializando o que é anormal. É tentadora a vontade de fechar os olhos a essa realidade deformada, conviver com o turbilhão e esperar que passe. Tudo se torna trivial, e a vida passa a ser regida pela banalidade, que é a indiferença diante do bem e do mal.
    Não ter medo, ser ousado, lidar com a adversidade e com as falhas humanas, são atributos que entendemos necessários à liberdade de escolha. Porém, qualquer autonomia esbarra na adesão forçada a que são submetidos aqueles que integram a base da pirâmide da nossa sociedade.
    É admissível crer que é possível escolher a realidade em que queremos acreditar e viver o nosso mundo particular. Nossas crenças são os valores que construímos. Vai uma pílula azul, da realidade normal e glamourosa da MATRIX ou a vermelha, do real e da dificuldade? Escolhamos. Ruffato fornece manual de instruções, sim, mas sob a forma de tapa na cara e com a determinação de não nos deixar incólumes. Se é a sensação de desconforto que o autor queria provocar no leitor, conseguiu. Parabéns.

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  2. Parabéns, Raquel, pela acuidade de tua leitura! Tudo isso foi confirmado e expandido na palestra de hoje, quando nosso convidado JOSÉ FRANCISCO BOTELHO nos ofereceu uma abordagem generosa da obra, abrindo o leque da Literatura Comparada e incluindo em sua reflexão o cânone, em alguns momentos em que as obras se destinam a apreender a cidade.
    Botelho foi esplêndido e muito bem sucedido e todos saímos contentes e engrandecidos por dentro. É um privilégio podermos ler e ter essa interlocução privilegiada com pessoas que, com bagagem teórico-crítica de altíssimo nível, dedicam-se a ler conosco e discutir aspectos controversos da Pós-Modernidade. Agora, vamos nos preparar para o ano de 2013, com uma listagem de livros bem especial que logo será publicada no blog pela nossa querida Dani Langer, que o gerencia.

    Um abraço a todos e obrigada por todo o apoio e pelas presenças.

    Léa Masina

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