Se o cão caminhava rente a mim parecia por falta de coisa melhor para
fazer. Talvez tivesse entrado na mecânica indolente dos meus passos.
Nada mais que isso. Sei que me sentia mortalmente desfamiliarizado com o
ambiente e que assim eu só poderia perceber o cão feito uma sombra que
se alienara de sua matriz — seu corpo verdadeiro habitava uma fonte que,
mesmo querendo, eu não podia alcançar. Parecia haver um mundo onde as
coisas se preservavam íntegras, mundo com o qual eu tinha rompido em
conseqüência de uma doença qualquer.
No lado de lá do muro havia uma escavadeira parada. Marcando talvez
uma obra que estivesse para ser iniciada. Ou que sofresse um impasse em
sua continuidade logo em seu começo. Em volta da máquina uma verdadeira
argila não tivera tempo de se ressecar. Perguntei-me se ali não
acontecia nada — como me sentia prestes a acreditar. Um beija-flor
suspendia o vôo em frente a uma margarida cansada e entre as macegas uma
cigarra ferrava o seu canto, aumentando o calor.
O cachorro já se dispersara de mim. Mirei o azulão do céu, em
inusitado regozijo. Não me comprometeria com os ingredientes do cenário.
Salvo com a visão insistente do céu — superior aos pequenos dramas que
me consumiam. Restaria saber como reassumir a minha faina diária: como
voltar a beber da água matutina ingerindo os meus remédios e reembarcar
nos meus afazeres do cotidiano, medianamente aflito por não poder dar
conta de mais um dia refratário ao meu entendimento…
E depois disso eu teria ainda algum futuro? Como voltar a provar da
rotina inofensiva quando se experimenta um mundo como aquele, a se
mostrar radicalmente indiferente à minha percepção? Passei a mão pelos
pontos do meu couro cabeludo e soube mais uma vez que eu viera mesmo do
pronto-socorro e não de minha casa e que era para o hospital que eu
deveria voltar, sob pena de queimar uma etapa grave e não encontrar mais
minhas próprias referências na cidade, supus.
Ajoelhei-me de cansaço sobre a terra seca. Precisava decidir como
voltar. Estava num deserto nos fundos daquela casa. Eu tinha sede. Não
queria entrar novamente na casa, pedir água a quem se dissolvera nas
sombras me deixando no abandono. Pela claridade, haveria ainda muito dia
pela frente. Então tirei a camisa, levei a cabeça para trás e
calmamente a torci sobre a boca sedenta. Espremia do pano um líquido
alaranjado, misto de suor e sangue renitente, e eu fingia que aquilo me
dava algum grau de saciedade.
Não que esse gesto conseguisse de fato aplacar a minha sede, mas
devolvia para mim um tantinho do meu sangue com que poderia me
restaurar, a tempo de eu chegar naquilo que eu aprendera a reconhecer
como Porto Alegre com uma nova força, muito longe da situação que me
prendia ao prédio sebento do pronto-socorro. Passei a mão pelos pontos
de minha cabeça e pensei se não seria o caso de eu voltar ao hospital,
aquele mesmo, na esquina da Venâncio Aires com Osvaldo Aranha e dali só
sair de novo com a anuência médica. Pensei que só assim eu poderia
retomar a marcha dos acontecimentos, depois do hiato da aventura com
Frederico sob o causticante sol daquele tempo — uma aventura muda, agora
me dava conta, sim, em que não trocamos uma única palavra.
13.
Olhei para a exuberância do azul do céu e senti que precisava falar com alguém, alguém que pudesse me confirmar, sim, que eu era um homem da mesma espécie do interlocutor e que me encontrava naquela paisagem cuja terra se mostrava em sulcos devido à seca da região, e que o dia era bonito mesmo e o sol doía no lombo.
Olhei para a exuberância do azul do céu e senti que precisava falar com alguém, alguém que pudesse me confirmar, sim, que eu era um homem da mesma espécie do interlocutor e que me encontrava naquela paisagem cuja terra se mostrava em sulcos devido à seca da região, e que o dia era bonito mesmo e o sol doía no lombo.
Vesti novamente a camisa para me proteger. Eu deveria mantê-la no
corpo, mesmo que um leve vestígio de sangue ainda insistisse depois da
lavagem. Quando chegasse à cidade eu estaria então completamente
vestido, inspirando respeito e em conseqüência compreensão pela minha
roupa de resto em estado de miséria.
Mas não estava ainda naquilo que eu pudesse considerar uma cidade.
Por onde eu olhava via terra esturricada, estrume de animais naquele
instante invisíveis, arbustos, macegas, árvores frondosas sob as quais
eu era instado a parar por minutos para não cair em insolação. Formigas
saíam por fendas da terra e pensei até em ser uma delas para estar em
atividade no entra e sai dos formigueiros.
Divisei um vulto olhando para a terra. Aproximei-me, eu precisava ouvir alguém me perguntar e eu responder, falar.
Era um homem velho. Vestia uma camisa e uma bermuda brancas. Ele
olhava uma sepultura avulsa. O túmulo se encontrava bem abandonado. Na
lápide encardida havia o nome do morto: Elio Drago. Dei boa-tarde ao
velho de branco. Dirigi-lhe a palavra, perguntei: Quem está enterrado
aí? É o dono dessa granja, ele respondeu. “Era italiano, veio fugido da
Itália, depois que manteve relações libidinosas com uma sobrinha de 13
anos, isso se soube pelo seu irmão solteiro que veio atrás do mano e se
suicidou meses após a chegada.” Quem o quê?, tive vontade de indagar.
Senti-me momentaneamente aturdido diante da fala do homem de branco.
“Aqui Elio Drago se juntou a uma amante pelo resto da vida, uma
mulher trinta e cinco anos mais nova, já mãe solteira de um menino. Ele
criou o menino, deu-lhe inclusive seu nome de família. Hoje é um jovem
que vem às vezes visitar a mãe. É o Frederico, Frederico Drago, que foi
viver por sete anos na Itália assim que fez 16 anos, voltou de lá há uns
três meses.”
Frederico nascera e tinha sido criado no Brasil. E, mistério dos
mistérios, queria aprender a falar português comigo. Ali concluí que eu
não o veria mais. E que jamais deslindaria o enigma de um garoto que
fora alfabetizado em português querer que eu lhe ensinasse a falar essa
língua. Que ardilosos planos ele poderia ter, nos quais me tivesse
incluído? Um garoto a almejar sobrepor o meu português ao dele… Pouco a
pouco fingiria o sucesso do aprendizado ao pronunciar palavras desse
idioma, a formar frases inteiras, a cantarolar canções brasileiras,
afirmando possuir uma facilidade tamanha para idiomas, falava com
fluência inglês, francês, espanhol, italiano, claro, agora a língua
portuguesa, a pronúncia exata, sem sotaque, perfeita, o ritmo da
conversação nativa… Eu me admiraria por certo e vassalo cairia diante do
seu raro pendor em seduzir.
O velho coçava o púbis com insistência. Falava e coçava o púbis.
Reparei que o tecido branco de sua bermuda mostrava-se encardido na
região da pélvis de tanto que ele passava a mão ali, não sei com que
sentido, sei lá se como um timbre desabusadamente sexual ou o de
reiterar que ele era quem era porque trazia em si a marca de uma
liderança viril, mesmo que cansada. Não sei se ele queria representar
para mim um confronto calado, a demonstrar que eu, mesmo mais novo, não
tinha a disponibilidade que ele tinha em sua como que argumentação
física. Cheguei a pensar que, por artes da insolação, eu tinha diante de
mim justamente a figura do morto enterrado a meus pés, o pai adotivo de
Frederico, rapaz de quem eu precisava fugir. E pensei que agora talvez
eu pudesse ser despertado enfim por um real apelo carnal, mesmo que esse
sopro viesse daquele velho à beira de sua própria sepultura, ele
passava a mão no púbis feito uma ladainha pagã, sublinhando cada
informação que ele discorria sobre Elio Drago, ele próprio, o lúbrico, o
insensato, o fugitivo de seu país para os braços de uma brasileira
trinta e cinco anos mais nova, mãe de Frederico Drago, bebê que ele
ninava na escuridão do quarto, entoando baixinho canções da Toscana, sua
pátria, até que se deita e beija a bochecha da criança e adormece com
Frederico no peito; o garotinho se acomoda com o jeito de mamar na mãe
que está na cozinha diante do fogão, auscultando o ponto exato para o
macarrão.
Elio Drago se encontrava ali comigo. Talvez eu não quisesse dormir
aquela noite, eu não quisesse acordar. Eu e aquele velho com a região
pélvica escura de tanto manuseio enigmático poderíamos passar as
próximas horas vivendo aquilo que eu não conseguira experimentar com
Frederico, seu enteado, começaríamos agora, eu daqui, ele de lá — mas e
daí?, o que poderia acontecer eu daqui ele de lá, assim —, só me restava
fechar os olhos e me alucinar com aquilo que o sol inclemente
processasse na minha cabeça quebrada, um homem com dificuldade de
lembrar o próprio endereço, quem sabe seu nome, agora na companhia
daquele velho à beira de sua própria sepultura, aqui, sob esse sol de
40º, pois é, aqui, eu tendo de ir embora pois precisava pegar Porto
Alegre ainda de dia, para entrar no meu pronto-socorro, deitar na minha
maca e deixar que o destino me reiniciasse, amém.
O velho com a braguilha encardida parecia ser todo olhos para o
túmulo onde voltaria a morrer. Segui viagem antes que caísse a tarde.
Virei a cabeça uma vez. Ele já não estava à flor da terra. Mesmo assim
abanei para sua ausência, um pouco culpado por não ter tocado em seu
braço, alguma outra parte, por não lhe ter transmitido um pouco do calor
de vivo… Andei, andei, parei diante de uma árvore com um tanto das
raízes à vista, o tronco coberto de hera. A sombra que caía me fez
pender a cabeça não pensando em nada, e o que vi foi uma flor viçosa,
aveludada, de que eu não sabia o nome, roxa, pétalas meio aladas, asas
de borboleta sob a brisa esvoaçavam, pousavam nos meus pés, beijavam
meus sapatos e então cessavam. Daquela erupção da terra, roxa, vinha um
perfume agreste, tão penetrante que parecia que toda a presença do mundo
estivesse posta ali, naquela sucinta corola, rente à qual um desenho
trêmulo de um colibri suspendia o vôo e se inebriava e sumia
repentinamente me deixando a sós com a flor que eu tinha vontade de
morder, mastigar, engolir, cagar em mínimas pinceladas na cueca pra
depois limpar.
14.
Naquele instante me ouvi cantando baixinho — as músicas me habitavam quase sem interrupções. O mundo me assoberbaria novamente em Porto Alegre, voltaria a ser espesso demais, e só a música me fazia esquecer por enquanto do peso que eu teria de enfrentar. Para não correr o risco de ficar repetindo meu endereço durante o trajeto de volta à cidade, para não esquecê-lo, anotei-o num papelzinho do fundo do bolso, pois, eu sabia, só com o meu endereço na ponta da língua me libertariam do hospital. Mesmo que em princípio tivesse convicção da geografia da cidade — independentemente de ter ou não o endereço na cabeça —, eu temia, sim, não encontrar mais as minhas referências no mundo, se por acaso queimasse a etapa do pronto-socorro. Se escapasse do período ainda devido como paciente, eu no mínimo continuaria hesitando na memória das coisas mais banais.
Naquele instante me ouvi cantando baixinho — as músicas me habitavam quase sem interrupções. O mundo me assoberbaria novamente em Porto Alegre, voltaria a ser espesso demais, e só a música me fazia esquecer por enquanto do peso que eu teria de enfrentar. Para não correr o risco de ficar repetindo meu endereço durante o trajeto de volta à cidade, para não esquecê-lo, anotei-o num papelzinho do fundo do bolso, pois, eu sabia, só com o meu endereço na ponta da língua me libertariam do hospital. Mesmo que em princípio tivesse convicção da geografia da cidade — independentemente de ter ou não o endereço na cabeça —, eu temia, sim, não encontrar mais as minhas referências no mundo, se por acaso queimasse a etapa do pronto-socorro. Se escapasse do período ainda devido como paciente, eu no mínimo continuaria hesitando na memória das coisas mais banais.
A canção que eu no íntimo cantava dava o ritmo da marcha. Eu fui
feliz naquela caminhada de retorno a Porto Alegre. O sol estava mais
baixo e eu andava com a camisa aberta ao peito, criando um tema melódico
que começava sóbrio e aos poucos ia se exaltando a ponto de eu imaginar
tufões de sopros, percussão alvoroçada, tímpanos, exultação, meu
coração disparava até que tudo ia sossegando pouco a pouco e uma flauta
se despedia quase inaudível e os meus passos feneciam. E eu olhava tudo
em volta, e quando digo tudo era tudo mesmo, não havia um só ramo
separado, uma réstia avulsa de raio solar entre duas copas, ou uma flor
solta esmaecida pela pujança de luz, nada disso: cada coisa existia em
seu conjunto e eu só sabia captar a vastidão e a vastidão era a unidade
mínima de tudo. Eu era um rei. E como rei me sentia. Tão assim, que só
me restava parar, contemplar, fruir o que os meus olhos alcançavam. Lá
adiante, numa estradinha poeirenta um ônibus velho passava. Ia para
onde, até o centro da cidade? Mas eu não me dei o tempo necessário para
pensar em providências práticas e deixei que o ônibus me fugisse e fosse
ao seu destino sem saber da minha existência ensimesmada.
Eu precisava reiniciar os passos. Por que Porto Alegre me chamava, se
eu não queria a dor de um hospital em corredores escuros e fétidos de
suor, sangue, pruridos, bandagens, rumores trêmulos? Por que Porto
Alegre me chamava?, indaguei batendo no peito até fazer barulho cavo,
como se me açoitasse, para não ter de formular a resposta que jamais
saberia dar. Por que Porto Alegre me chamava, hein?, ainda insisti e
repeti e repeti para não ter de elaborar a resposta que, sim, sim,
jamais saberia dar.
Eu teria de chegar a Porto Alegre antes do entardecer. Então me
apressei, abri a braguilha, forcei a uretra e mijei mais do que
precisava. Mijei em cima de um formigueiro. Brinquei como na infância,
de Deus. Feito Deus, eu mandava uma hecatombe sobre os seres inferiores,
uma brutal intempérie que os castigaria num ato gratuito. Feito Deus
quis descartar qualquer misericórdia. Aquelas minúsculas vidas que
andavam em sua faina diária jaziam agora exterminadas em meio à espuma
da minha urina torpe. Isso me dava uma força que não costumava encontrar
tão facilmente. Eu conseguia eliminar os que interpunham um movimento
frenético entre mim e a paisagem. De movimento, apenas uma aragem tímida
que mexia imperceptivelmente em algumas folhas distraídas. No mais,
tudo coagulava, eu estava retido no instante. Naquela inércia me veio a
idéia de estar preparando o meu gesto terminal. Mais uma vez, ele
parecia a ponto de ocorrer… Mas mais uma vez, eu sabia, ele tardaria…
Perguntei-me se o meu corpo já não tinha morrido no hospital. E se eu
não era um desses fantasmas que apenas se extasiam com o quase nada que
os constitui.
Olhei meu organismo, abri os braços para me inspecionar melhor.
Tirando a barriga um tanto proeminente, ele parecia razoavelmente bem,
ainda era um instrumento carnal, embora não pudesse contar com ele em
nenhum desempenho qualificado. O sol baixara mais, mas ainda não se
avizinhava o crepúsculo. Eu tinha um tempo para chegar até a minha maca
no corredor do hospital. E se ela não estivesse mais vazia? E se me
dissessem que o cara que a ocupara tinha morrido? Para onde eu iria?
Encontraria a minha residência ou tudo o que me pertencera se esvaíra
comigo? E o que eu faria com isso que sobrara, esse cara aqui
averiguando o seu próprio corpo, misto de vestígio de sangue, muito
suor, e um vago apetite por continuar, mesmo que em sua malfadada
solidão? Iria até o Hospital de Pronto-Socorro de Porto Alegre verificar
se eu estava à beira de ganhar alta para retomar minha vida de antes ou
se não, se eu já tinha ido para o beleléu? Se as portas dos vivos se
mostrassem cerradas para uma figura inexistente como eu, o que me
restaria senão vagar pelas ruas feito um mendigo sem razão para esmolar?
Olhei o solo bruto de meu itinerário errante de retorno a Porto
Alegre e vi uma aliança visivelmente vagabunda, sim, mas ainda meio
cintilante contra a relva. Apesar de já ser tarde avançada, a luz puxava
um brilho qualquer do pequeno objeto. Peguei-o e ele coube no indicador
direito. Estava tão desorientado pelos últimos acontecimentos ou pela
falta deles, que de imediato me senti ligado a uma força, mas que não
poderia se revelar sob pena de eu não sobreviver. Ou eu bem continuava
só, ou, se encontrasse enfim a companhia, eu não chegaria até o hospital
nem a lugar nenhum. Mais uma prova inútil na minha vida cheia delas.
Resolvi deixar a aliança justa no meu dedo, como uma promessa, sei lá,
que eu sabia não deveria cultivar.
Andava de novo, andava agora um pouco apressado. Passei a mão nos
pontos da cabeça e era nisso que eu deveria pensar. Os pontos no talho.
Deveria, sim, chegar ao pronto-socorro da cidade, ocupar de novo a minha
maca se ela continuasse vaga e me abandonar aos possíveis cuidados dos
médicos e enfermeiros. Não sem antes disfarçadamente olhar a anotação do
meu domicílio escrito no papel e recitá-lo e, pronto! — com a memória
do número do meu prédio e apartamento poderia enfim sair do seio dos
feridos e me dirigir enfim à minha casa para recomeçar. Por enquanto eu
esbarrava nas pedras, resvalava nas folhas caídas com o muco teimoso da
terra, ouvia mugidos de bois distantes, canto de pássaros que começavam a
voltar a seu sono entre os galhos — eu próprio talvez fosse um deles e
não acordasse mais no hospital ou em qualquer outro lugar — escondido de
tudo para sempre, em paz…
15.
Foi quando vi uma gata grávida se espreguiçando de pé, as mamas túmidas. Ciciei o som típico que os homens encontraram para chamar os gatos e fiz o movimento com os dedos para o mesmo fim. Ela veio aos meus pés, não ficou à distância e à espreita como os felinos fazem diante de desconhecidos, veio e passou seus bigodes pelos meus tornozelos e ronronou e tudo e sentei na relva arruivada pela inclemência do sol e coloquei-a entre as pernas e passei a mão por seu ventre intumescido; encaixei-a sem muito pensar na virilha; ela levantou o rabo e o calor dos nossos corpos era maior do que eu podia imaginar; a gata então desfez sua posição e pulou sobre a minha perna e se foi autônoma a esperar por sua cria.
Foi quando vi uma gata grávida se espreguiçando de pé, as mamas túmidas. Ciciei o som típico que os homens encontraram para chamar os gatos e fiz o movimento com os dedos para o mesmo fim. Ela veio aos meus pés, não ficou à distância e à espreita como os felinos fazem diante de desconhecidos, veio e passou seus bigodes pelos meus tornozelos e ronronou e tudo e sentei na relva arruivada pela inclemência do sol e coloquei-a entre as pernas e passei a mão por seu ventre intumescido; encaixei-a sem muito pensar na virilha; ela levantou o rabo e o calor dos nossos corpos era maior do que eu podia imaginar; a gata então desfez sua posição e pulou sobre a minha perna e se foi autônoma a esperar por sua cria.
De repente, do nada, eu me senti assim como se estupefato. Sim, não
que houvesse alguma coisa ou alguém diante do que eu pudesse me sentir
em raro espanto. A ocorrência da felina já tinha passado. Peguei no meu
pau e ele se mostrava excitado. Sentia-me acalorado para além da
existência do verão. Eu parecia ir me inundando de um ponto interior que
vinha caudaloso a ponto de eu tremer e em gozo sexual ser jogado sobre
urzes e terra seca contendo misteriosamente um lodaçal ou de uma
vertente teimosa ou de uma chuva que a memória não podia ali abarcar.
Bebi um pouco daquela água sem olhar seu estado de sanidade. Não
senti gosto algum. Sorvi mais uns dois goles. Ouvi o barulho de um avião
passar. Levantei-me com um certo custo, feito viesse de uma prostração
antiga, da qual eu precisasse enfim me libertar para encontrar um teto
seguro antes de a noite descer.
Levantei-me, pois, e senti insegurança em dar meus primeiros passos
após ser jogado contra o solo à mercê de alguma força que eu não pude
dominar. De onde vinha aquele rompante que me impelira a um soluço
genital mesmo que para tal eu não parecesse preparado? Dei uns passos
como que incorpóreos: eu não pertenceria mais àquela terra esturricada,
meus pés enlouqueceriam, as solas saltariam, no solo mal iriam tocar.
E sob meus pés rasgava-se de repente uma vala para onde pulei assim
que a percebi. Na certa uma trincheira de alguma guerra sobre a qual eu
não tomara conhecimento, quem sabe de traficantes, de alguma coisa
assim, eu estava numa zona periférica. Mas aquele local não tinha o ar
de ter sofrido uma conflagração, eu ouvia pássaros, sim, e no meio deles
planava um silêncio para sempre obsequioso com os pequenos trinados.
Súbito nada mais restou, nem os trinados, nada mesmo, só a mais
impositiva calmaria, e então fiquei um tempo sem me mexer para não
causar nenhum distúrbio à ordem da hora, assim, os braços caídos, os
olhos em meio ao dia que ia se dourando ao se aproximar do entardecer.
Um simples “ai” que eu exalasse seria demasiado. Então, calei-me e o
silêncio emergia de mim sem qualquer esforço, era como se a voz não
tivesse sido ainda projetada para as grandes compreensões, sim, e eu de
fato nada precisava compreender — nem precisava antever o destino onde
iria adormecer mais tarde, se em casa ou no hospital. E digo mais: ali
não me interessava sequer a saudade que eu quiçá pudesse sentir do
garoto nas próximas horas; nem me interessava preparar mais uma rodada
de explicações sobre a palavra “saudade” para dar a meus alunos de
português para estrangeiros — a palavra “saudade” sobre a qual eu
explanava orgulhoso como exclusiva desse idioma. Eu não pensava em nada
ali naquela vala e me agachava e me encolhia — um caracol puro feixe de
nervos que agora se distendia lentamente e novamente se fechava e se
distendia e se fechava…
Recebendo alta, levaria novamente o meu isolamento para o velho
endereço talvez naquele dia ainda, e certamente queria mesmo postergar
essa passagem, então eu deveria ficar aqui encolhido como bicho, me
distendendo e me fechando, no alheamento dessa vala onde sinto a
pulsação da terra, de onde lesmas saem de seus ínfimos buracos, a
sinalizarem que a seca aqui é ilusória — a umidade, sim, me inundará me
redimindo da humilhação por todo esse estado desgraçado, amém.
Até que parei feito uma estaca. Senti um toque meio submerso,
certamente de uma ausência que ainda quem sabe eu não tinha condições de
desvelar. Mas não, eu agora identificava a fonte do contato, sim: era
um bicho irreconhecível, grisalho, pelas frestas do pêlo ralo via-se a
carne azulada, um bicho que se achegara e recuara e agora vinha
novamente, se desentranhando da terra. Inadmissível que um animal
desconhecido do meu vocabulário zoológico viesse tentar alguma
conveniência no meu corpo, um animal aparentemente sem maiores
desconfianças nem hostilidade. Não se constituía num bicho bonito nem
causava em mim algum franco sentimento de rejeição. E me perguntei se
não deveria levá-lo comigo aonde quer que fosse, para o pronto-socorro
ou minha casa ou pelo menos por mais algumas horas de caminhada a que eu
precisasse ainda me submeter.
Ele veio de novo jogando-se macio na minha barriga e eu toquei-o meio
confrangido, com um calafrio, e ele em resposta ao meu toque grunhiu
sem sinal do que pudesse significar aquele som e eu empurrei-o contra o
solo crestado e me levantei e saí do meu esconderijo resvalando duas
vezes e quando me libertei do meu estado subterrâneo, agora inteiro na
planura de cima, percebi que o sol descia no horizonte e que precisava
saber o que fazer de mim, urgente.
Eu temia não chegar a tempo de poder reconstituir a realidade da qual
era oriundo, a do pronto-socorro e tudo o mais. Temia, sim, que os
médicos e enfermeiros do hospital já tivessem dissolvido da memória a
minha presença, que os registros de minha internação se desmanchassem e
que, antes desse ponto aqui no fim da tarde, nessa estrada poeirenta sem
passantes, tudo o mais seja uma ilusão cunhada por força do meu próprio
desabrigo.
Eu estava ali, numa meditação enfermiça — mal de que sempre padecera.
Estava ali, tocando os pontos na cabeça, mais uma vez procurando
reafirmar o talho que me tinha levado ao pronto-socorro de uma cidade em
cujas cercanias eu navegava agora em cogitações febris. Pensei se não
seria o caso de alguns robustos micróbios me invadirem por aquele corte
na cabeça me deixando tão entregue que nenhum antibiótico teria o poder
de me salvar. Dormir, morrer obrigando uns gatos-pingados a sentarem em
volta do meu corpo, velando-me por algumas poucas horas para eu ir
depressa com o prêmio de não ter mais de aferir a realidade ou
irrealidade das minhas circunstâncias. Pensei isso sem sentir a mínima
autocomiseração. Se pudesse assim escolher por vias transversas o meu
ponto fatal, seria grande a chance de tudo correr bem. Iria de cabeça
erguida, um pequeno herói seguro do andamento de seu próprio desfecho.
Estava ali, observando aquilo tudo que chamavam de mundo, e me dizia,
era preciso me suicidar se tivesse uma bravura. Eu me perguntava se
deixaria alguém culpado diante da minha decisão, como se realmente
possuísse alguém objetivamente permeável ao meu desaparecimento. Então
corri, me desabalei tanto em direção nenhuma que parecia voar, no duro,
uma sensação de que eu não tinha pés nem peito nem cabeça raspando na
terra, que eu ia, simplesmente isso, ia no ar, que eu era um sujeito
incapaz de me enredar com a gravidade, que eu simplesmente ia em direção
nenhuma e que depois disso seria provável que eu não soubesse mais
sofrer.