domingo, 26 de agosto de 2012

Notas sobre o contemporâneo

Colaboração de Andrea Kahmann

Este artigo (na falta de definição mais adequada, vou chamá-lo assim) é um compartilhamento de angústias que têm permeado os debates sobre as “Leituras do Século XXI” promovidos pela Profª Dra. Léa Masina por meio do Centro de Estudos Literários, em Porto Alegre. E pretendo iniciá-lo com um fato que presenciei. Afinal, se a “autoficção” é característica tão indubitável da malha teórica sobre literatura contemporânea, nada mais justo que se garantir a prerrogativa de invocar experiências pessoais, também, à crítica sobre a ficção, ainda que eu não tenha aprendido o nome que se dá a isso.

Na época em que eu lecionava na Universidade Federal da Paraíba, lançou-se a ideia de compor uma coletânea sobre literatura paraibana. E as paixões inflamaram-se em debates sobre a possibilidade de se incluir escritores como o “samparaibano” Amador Ribeiro Neto, o “pernambucampinense” Astier Basílio, o “paraibanucho” Lau Siqueira e outros que, talvez por falta de vocação sonora, não conseguiram cunhar para si uma justaposição de gentílicos capaz de soar agradável. O tema surgiu na minha sala de aula e iam longe já os argumentos de que “apenas os nascidos na Paraíba eram paraibanos”, quando um gaiato levantou o braço: “Professora, Clarice Lispector não nasceu na Ucrânia? Ôxe, e por que raios, então, eu tive de estudá-la para o vestibular?”. Pergunta debochada, mas pertinente. Na busca de uma solução “justa” para o impasse, alguém propôs a alternativa legalista: seriam aceitos textos de escritores que estivessem morando, ininterruptamente, há mais de 15 anos na Paraíba – a mesma lógica para processos de naturalização, ora. Comentei o caso na sala dos professores e uma colega de francês adorou a ideia. Mais: disse-me (num tom entre o desafio e a ironia) que vinha, há tempos, cogitando incluir Cortázar na ementa do curso de Literatura Francesa. E fui-me embora para Pasárgada sem saber como se encerrou a peleia por lá.

As conclusões deste episódio são óbvias, mas necessárias. Não é de hoje a perspectiva de que a literatura não deve ser enquadrada nas “caixas de aço” (retomando Barberena) dos lugares e dos não-lugares (esta expressão é de Jameson). E, apesar de antiga, essa querela pelo lugar da literatura ainda suscita discussões apaixonadas e tentativas reiteradas de sistematização a partir do território (recordo, aqui, o projeto dos Atlas literários promovido pelo IBGE). Na falta de solução, temos a tendência a considerar como “é nosso” aquilo que nos interessa e rechaçando aquilo que não nos convém, de forma a criarmos, para os localismos, a versão reduzida do “nacional por subtração”. Há tempos fazemos isso. Afinal, não é tão moderninha assim a figura do viajante, do desterrado, do que vive nas frinchas e no trânsito entre culturas. Walter Benjamin, em O narrador, já ponderava: “Quem viaja tem muito que contar, diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições”[1]. O narrador marinheiro comerciante e o narrador camponês sedentário, para usar as expressões de Benjamin, sempre conviveram e seguem convivendo no mesmo sistema literário, ainda que, em determinadas épocas, façamos festinhas a um e procissões ao outro.

No último Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), em 2011, Rosana Corrêa Lobo, doutoranda pela PUC-Rio apresentou algumas ponderações sobre a coletânea “Amores Expressos”. Nesse trabalho, Rosana sintetizou as polêmicas que envolveram o projeto publicado pela Companhia das Letras, resultarando em debates acalorados na Folha de São Paulo e blogs de literatura. Afinal, que critérios nortearam a escolha dos autores? Ser amigo do mentor do projeto? E por que usar verbas públicas (provenientes da Lei Rouanet) para financiar a viagem e a estadia nas cidades escolhidas? Será mesmo preciso estar num determinado lugar para escrever sobre ele? Sem querer pôr mais lenha aos debates, a pesquisadora concluiu: “O que pretendo considerar é que se hoje a “patrulha” – comandada por jornalistas, editores, blogueiros e escritores contemporâneos - questiona os projetos literários no que diz respeito a quem pegou ou quem perdeu o “bonde”, se o bonde tinha muitos benefícios ou não, se era movido a dinheiro público ou não, em outros tempos, no século XIX e início do XX, a patrulha monitorava a origem do bonde, se o bonde ia percorrer ‘autênticas’ paisagens brasileiras ou não, se ele transportava índios, negros, mestiços, ou seja, se o bonde tinha a cara do Brasil”[2].

De fato, Rosana, o bonde do Brasil parece não suscitar tantas polêmicas porque acompanhamos essa novela de dentro de casa. Já superamos a crise alencarista depois de muita terapia. Ninguém duvida que Clarice Lispector seja digna representante das letras brasileiras. Contudo, nada é tranquilo quando se discutem as tintas regionalistas. Essa tensão permanente entre global e local, entre ser do mundo ou ter raízes, esse meter-se nas frinchas mas estar permanentemente “fora do lugar”, é herança daquele pós-moderno cunhado pela década de 60 e que as nossas leituras do século XXI herdaram e reinventaram com novas cores. Referi o exemplo da Paraíba, mas, aqui nos pampas, também nós ficamos ruminando se a literatura é gaúcha, gauchesca ou sul-rio-grandense. Afinal, a literatura é “nossa” quando feita pelos nascidos no Rio Grande do Sul e que a escrevem não importa de onde (incluindo, então, o “paraibanucho” Lau Siqueira)? É a que trata sobre temas que consideramos afeitos ao Rio Grande do Sul, não importa por quem tenha sido escrita (por exemplo, o uruguaio Mario Arregui)? É aquela escrita no Rio Grande do Sul, não importa onde tenha nascido o escritor (caso de alguns livros de Daniel Galera)? Ou se, por fim, é aquela que transita pelo Rio Grande, não importando suas origens (momento em que seríamos forçados a reconhecer como literatura gaúcha todas as traduções que influenciam esse sistema literário)? Teremos de aplicar, também aqui, as regras da naturalização, das duplas nacionalidades, ou uma junção estruturalista e matemática de regras para definir a partir de quando estaremos tangenciando essa literatura localista que insiste em proclamar que tem história e características peculiares? E será que o local da cultura importa mesmo tanto assim? Teóricos pós-colonialistas assentiriam graves a essa pergunta, mas isso é tema que se há de tratar nos divãs da afirmação identitária.

Voltando à pesquisa apresentada na Abralic, concordo com Rosana quando ela argumenta que há uma via comum entre todas as narrativas de “Amores Expressos”: “Neste mundo pós-utópico, o que vemos nestas narrativas são essas personagens afundando, afundando, sem nem sequer pedirem socorro pois a esperança foi substituída por um presente trágico, hostil, empoeirado e impositivo. Personagens deslocadas, que veem se desfazerem seus vínculos com a terra natal, marcados pelo sentimento de não-pertencimento a qualquer espaço, a qualquer esfera de identidade palpável e que buscam em vão um lugar mais habitável”[3]. Convencionou-se designar que é um tema pós-moderno esse desencaixe. A aceleração generalizada dos tempos de giro do capital, segundo Harvey, induziu à dinâmica de uma sociedade do descarte: do ser capaz de jogar fora não somente bens de produção, mas também “estilos de vida, relacionamentos estáveis, apego a coisas, edifícios, lugares, pessoas e modos adquiridos de agir e ser”[4]. O descentramento do sujeito[5] implicou não apenas em algumas rupturas com as tradições, mas o recalque (em acepção freudiana) do sentir. Assim, postula Jameson, o poder oculto da tradição pode ter sido soterrado por autonomia e liberdade, mas “a liberação, na sociedade contemporânea, da antiga anomie do sujeito centrado pode também implicar não apenas a liberação da ansiedade, mas também a liberação de qualquer outro tipo de sentimento, uma vez que não há mais a presença de um ego para encarregar-se de sentir”[6]. O lado sombrio desse fenômeno é assinalado por Giddens como sendo o aumento das dependências e compulsões[7]. Porém, tal esquizofrenia (e essa expressão cunhada por Jameson talvez seja a mais representativa daquilo que se convencionou chamar de “pós-moderno) assumiu a responsabilidade pelo caminho diametralmente oposto. Segundo Harvey: “Quanto maior a efemeridade, tanto maior a necessidade de descobrir ou produzir algum tipo de verdade eterna que nela possa residir. O revivalismo religioso, que se tornou muito mais forte a partir do final dos anos 60, e a busca de autenticidade de autoridade na política (com todos os seus atavios de nacionalismo, localismo, admiração por indivíduos carismáticos e “multiformes” com sua “vontade de poder” nietzschiana) são casos pertinentes. O retorno do interesse por instituições básicas (como a família e a comunidade) e a busca de raízes históricas são indícios de procura de hábitos mais seguros e valores mais duradouros num mundo cambiante”[8].

Já dizia a filosofia chinesa: em yin há sempre yang. Assim, se a fuga dos constrangimentos do passado é tema do contemporâneo, também o é a metaficção historiográfica e essa necessidade de reescrever e reinventar as memórias, como talvez ocorra com Zoé Valdés e sua ficção pró Fulgencio Batista. Se é fato que colocamos em xeque a subversão de gênero, é igualmente válido considerar que uma transexual acalente o desejo de ser uma conservadoríssima mãe de família, como ocorre em “Sirena Selena, vestida de pena”, de Mayra Santos-Febrés. E é assim que a espanhola Lucía Etxebarría propõe “A Eva Futura” na qual estabelece conceitos sobre o que vem a ser “feminismo” hoje e encerra a edição com um questionário que inclui a esponja com que tu lavas a tua louça. Outras questões do teste de Etxebarría sugerem que tu és uma desesperada se a primeira coisa que fazes ao chegar em casa é verificar as mensagens no celular e a caixa de e-mails. É como nos sentimos acompanhados em perfeita solidão: criando subterfúgios na realidade (sic) virtual. Esse suporte da internet, que poderia conceber um livro inteiro sustentado na troca de e-mails (estou pensando em Leticia Wierzchowski), por que é chamado de literatura quando impresso num exemplar que pode ser autografado na Feira do Livro? Notemos: não é apenas o local da cultura que entra em crise, mas o próprio conceito de literatura se esfacela ante os folhetins, os blogs e suportes outros, como o Twitter, tão celebrado por Carpinejar. E se o esfarelamento do narrador e dos gêneros literários (como Altair Martins faz com maestria), se o soltar-se das amarras das teorias clássicas é uma faceta do contemporâneo, também o são os versos do jovem Astier Basilio, quando procura nas formas fixas do cordel a régua para a sua poesia. O fanatismo da fragmentação da forma não pode chegar ao extremo de gritar frente a um soneto: “isso é coisa do demônio!”. Porque essa esquizofrenia do contemporâneo abarca o híbrido: não só a literatura transnacional e desencaixada de “Amores Expressos”, mas também aquela que conscientemente pretende a cor local, os relatos rurais e as relações primárias, para fazer referência aos eixos referidos por Beatriz Rezende e tão de acordo com Harvey. Eis a liberdade promovida pela literatura, que sempre deixou dialogar as diferenças.

Acredito, sim, que as próximas gerações se lembrarão de nós como os homens que descobriram o virtual com o mesmo espanto dos que viram a primeira máquina a vapor. A internet ressignificou a cultura, a noção de tempo e as relações transpessoais, já dissemos. Mas não só isso, ela democratizou a informação e criou novos pânicos: o ficar desconectado, o de estar desinformado, o de não confiar nas fontes, o de ver, num estalar de dedos, a sua tese ruir, a difamação propagar-se, a privacidade ir pro espaço e os direitos autorais descerem pelo ralo. Seguem em nós os ecos de Auschwitz, de Hiroshima e Nagasaki, mas ultrapassamos as angústias dos homens da década de 40. Não queremos permanecer na mesma gaveta de “pós-modernidade” que eles. Esse homem médio, que no final do século XX, se deslumbrava com a internet discada tampouco nos diz respeito. Somos os primeiros a falar em “pós-humano” e não escondemos a nossa euforia e o desconserto em frente a isso tudo.

Pode ser que as próximas gerações se lembrem de nós como os leitores espantados de “Eles eram muitos cavalos”, de Luiz Ruffato, de “A visita cruel do tempo”, de Jennifer Egan, de “Os verbos auxiliares do coração”, de Péter Estherházy e de toda essa escrita de esfacelamento da forma, de descentramento do narrador, de zonas de contato com outras plataformas semióticas. Mas haverá quem se recorde da escrita de Mia Couto e tentará compreender como essas angústias conviviam com referências tribais, com analfabetos, fome, guerras, amputações por causa de minas terrestres e AIDS. Nesse contemporâneo de tão poucas certezas (imagino, aqui, um risinho de escárnio de Tiago Bernardón de Oliveira, meu caro amigo historiador e marxista, que insiste em recordar: todas as épocas foram de incertezas), retomo Walter Benjamin para ponderar que é possível que tenhamos perdido parte dessa capacidade de narrar no sentido de compartilhar experiências. Gustavo Melo Czekster, em sua contribuição para o blog “Leituras do Século XXI”, disse-o muito bem: “Eu gostaria de ler uma obra literária e aprender com ela, não levar o escritor/personagem para tomar um café em casa”.  E se digo que essa capacidade foi perdida apenas em parte é porque em yin há sempre yang.

Gustavo Czekster e eu somos cúmplices nesse desconforto diante da escrita pirotécnica que se convencionou chamar de “literatura contemporânea”. Talvez com a mesma desconfiança de Monteiro Lobato em face de Anita Malfatti. Talvez com cara de Chico Buarque que ficou sem saber o que Caetano pretendia com aquela guitarra elétrica. Concordo com Gustavo que “o determinante na literatura ainda é uma história bem contada”, embora eu reconheça que é possível, com o tempo (senhor da razão; já perdoamos o clichê), que mudemos nosso conceito de “história bem contada”. Apesar de tudo isso, tenho cá meus palpites sobre o que estamos vivendo em Porto Alegre de forma geral e especificamente nesses seminários da Profª Léa Masina. Mais do que gostar, ou não, dessas leituras do século XXI, o importante é conhecê-las, entendê-las, pensar a respeito. Ou, como antes de mim, disse meu colega Gustavo Melo Czekster: “A quantidade de dúvidas é diretamente proporcional à alegria causada pelas reflexões”. Afinal, posso não querer ter uma reprodução de “Guernica” na parede da minha sala de estar, mas pensar os rumos da arte a partir de Picasso é fundamental quem se pretende culto. E estabeleço essa relação com uma alegria secreta: os inícios de século são sempre extasiantes! Nossas crises cibernéticas estão desencadeando outras vanguardas, avassaladoras como as do século que se foi. Sim, estamos na vanguarda! E entendo que isso dê medo a nós, gaúchos, que não superamos a “caixa de aço” da tradição. Não por nada brotam Centros de Tradição Gaúcha mundo afora com dogmas sobre ritmos e movimentos e prescrições de como assar um pedaço de carne. Eu mesma escrevo isso lavando mate – e ando lá pela quinta chaleirada! Além do movimento nativista, do bairrismo risível ou levado a sério, somos tendencialmente conservadores com a cultura dita “erudita”, a qual procuramos desesperadamente salvaguardar dos ataques do populacho, do novo, do efêmero. Mas junto com a literatura de tendência rural e redondinha na forma, pipocam propostas absolutamente inovadoras, como as dessa gurizada publicada pelos selos editoriais que querem mudar os ares da cultura porto-alegrense. Não sei qual nome as próximas gerações darão a esse movimento que estamos presenciando de camarote; só sei que ele é sui generis. Falarão das oficinas, dos seminários, da escrita criativa sendo levada a sério pelas universidades, das editoras que subvertem padrões, dos grupos que se reuniam para discutir o que escreviam e também o que liam e com base em que propostas teóricas interpretavam o que liam. Fascina-me essa efervescência cultural de Porto Alegre hoje. Não chego ao ponto de dizer que vivemos a Renascença das Letras, mas entendo as razões de quem estabelece tal comparação. E, francamente, não sei se ficarão para os manuais de literatura as páginas de letras sobrepostas, os trechos que parecem gráficos ou apresentações de power point. Só digo que não quero perder o bonde da história. Nem que seja para decidir, ao fim, que é preciso trotar a cavalo, redefinir fronteiras e rediscutir o que é, afinal, ser gaúcho. Nem que seja para retomar a forma fixa, a rigidez dos gêneros, os temas calcados na tradição. Nem que seja para decidir que é preciso voltar, como, aliás, também eu voltei para a minha ilusão de “casa” depois de provar o desencaixe e um presente empoeirado, impositivo e trágico. Aposto que Léa Masina esperava uma conclusão com Habermas, mas encerro este artigo citando Mano Lima: só quem saiu de casa tem pra onde voltar.

Andrea Kahmann é Licenciada em Letras pela UNISC, Mestre em Literatura Comparada pela UFRGS, foi Professora do Bacharelado em Tradução da UFPB. Atualmente, é analista do IBGE.




[1] BENJAMIN, Walter. O Narrador: observações sobre a obra de Nikolai Leskow. In: Benjamin, Horkeimer, Adorno e Habermas – Textos escolhidos. São Paulo: Abril, 1983. p. 58. Coleção Os pensadores.
[2]  LOBO, Rosana Corrêa. Amores Expressos: literatura brasileira em tempos de globalização. Disponível em: <http://www.abralic.org.br/anais/cong2011/AnaisOnline/resumos/TC0672-1.pdf> Acesso em: 21 ago. 2012.
[3] Ibidem.
[4] HARVEY, David. Condição pós-moderna. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 1992. p. 258.
[5] Cf. JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Tradução de Maria Elisa Cevasco. 2. ed. São Paulo: Ática, 1997. p. 42
[6] JAMESON, op. cit., p. 43.
[7] GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Tradução de Maria Luisa X. de A. Borges. 4. ed. Rio de Janeiro / São Paulo: Record, 2005.  p. 56.
[8] HARVEY, op. cit., pp. 263-264.

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