Colaboração de Leila D.S. Teixeira
A palestra proferida pelo Professor Biagio D'Angelo, no último sábado 06 de outubro, dentro do Ciclo de Debates sobre Literatura do Século XXI, foi tão rica e completa que não ouso aqui tentar reproduzi-la. Pretendo apenas mencionar cinco questões, e seus respectivos desdobramentos, que chamaram a minha atenção a respeito de Péter Esterházy, e que me proporcionaram uma leitura mais profunda do livro Os verbos auxiliares do coração. Por uma questão formal, agrupei as questões em blocos, que não necessariamente seguem a ordem utilizada pelo palestrante.
1) A literatura e o projeto nacional
Segundo o Professor Biagio, a obra de Esterházy enquadra-se na renovação ficcional ocorrida em países do leste europeu pós década de 1970. Áustria, Hungria, Tchecoslováquia (hoje, República Checa e Eslováquia), Alemanha Oriental, Polônia, Iugoslávia (em especial, a atual Sérvia) foram berço desta "nova" literatura escrita em idiomas "ex-cêntricos", ou seja, línguas de fora do centro: literatura que a Europa Ocidental excluía dentro de um contexto histórico de quase colonialismo intercontinental. Ingo Schulze, da antiga Alemanha Oriental, foi um dos autores citados como representativo deste momento literário, ao lado de Esterházy.
Esterházy consegue ultrapassar a mera afirmação nacional e cria, por meio de seus livros, uma macro-estrutura estética que ultrapassa as fronteiras da Hungria.
2) A literatura dentro da literatura
Dentre as características da obra de autor húngaro apresentadas pelo Prof. Biagio, está o uso em abundância de citações (ou "textos hóspedes"), de forma direta, como se fossem de Esterházy.
A grande quantidade dessas citações não permite uma leitura organizada, mas serve como farol para a interpretação do texto. Por meio da farta presença de trechos de outros livros em Os verbos auxiliares do coração, Esterházy estabelece um diálogo com os autores sobre o luto. Tal diálogo dá-se em um âmbito filosófico e teológico, visto que a maioria do escritores "hóspedes" produzem literatura com fortes traços metafísicos ou religiosos.
Este ponto gerou uma série de questões interessantes vindas da platéia, das quais destaco duas.
Na primeira delas, indagou-se o significado da citação central "Sou um metal que ressoa e um címbalo vibrante!". O professor Biagio lembrou que a frase remete às Epístolas de São Paulo aos Corintios (I, Corintios, 13), e que significa que o amor é superior a tudo, que a existência sem amor não faz sentido. Seria uma declaração de amor à mãe por parte de Esterházy? E a citação completa "Sou um metal que ressoa e um címbalo vibrante! Que todos apodreçam. Odeio você" seria uma declaração de amor seguida do repúdio à morte da mãe? Abaixo, transcrevi o trecho completo da Bíblia, para a reflexão.
I Corintios 13
1 Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o címbalo que retine.
2 E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria.
3 E ainda que distribuísse todos os meus bens para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria.
4 O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não se vangloria, não se ensoberbece,
5 não se porta inconvenientemente, não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não suspeita mal;
6 não se regozija com a injustiça, mas se regozija com a verdade;
7 tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.
8 O amor jamais acaba; mas as profecias serão aniquiladas; as línguas cessarão; havendo ciência, desaparecerá;
9 porque, em parte conhecemos, e em parte profetizamos;
10 mas, quando vier o que é perfeito, então o que é em parte será aniquilado.
11 Quando eu era menino, pensava como menino; mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino.
12 Porque agora vemos como por espelho, em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei plenamente, como também sou plenamente conhecido.
13 Agora, pois, permanecem essas três coisas: a fé, a esperança, o amor; porém, a maior delas é o amor.
1 Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o címbalo que retine.
2 E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria.
3 E ainda que distribuísse todos os meus bens para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria.
4 O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não se vangloria, não se ensoberbece,
5 não se porta inconvenientemente, não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não suspeita mal;
6 não se regozija com a injustiça, mas se regozija com a verdade;
7 tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.
8 O amor jamais acaba; mas as profecias serão aniquiladas; as línguas cessarão; havendo ciência, desaparecerá;
9 porque, em parte conhecemos, e em parte profetizamos;
10 mas, quando vier o que é perfeito, então o que é em parte será aniquilado.
11 Quando eu era menino, pensava como menino; mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino.
12 Porque agora vemos como por espelho, em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei plenamente, como também sou plenamente conhecido.
13 Agora, pois, permanecem essas três coisas: a fé, a esperança, o amor; porém, a maior delas é o amor.
A outra pergunta referia-se ao uso do nome Beatriz Viterbo para a mãe do narrador, em Os verbos auxiliares do coração. Biagio recordou que a morte da Beatriz Viterbo do conto de Borges é o que permite ao personagem borgiano encontrar o Aleph.
A observação do Professor Biagio lembrou-me o que Saúl Sosnowski, no livro Borges e a cabala, citou sobre o significado da letra aleph para os cabalistas:
Para a Cabala, essa letra significa o Ein Sof, a ilimitada e pura divindade; também se disse que tem a forma de um homem que mostra o céu e a terra, para indicar que o mundo inferior é o espelho e o mapa do superior (…)
O aleph é o segredo de cima e de baixo, e todos os segredos da fé dependem dele.
Após a palestra, na esteira do que foi dito pelo Professor Biagio sobre a relação de quase todos autores citados com luto e com morte, a colega Rackel Tambara pesquisou os escritores presentes no prefácio de Os verbos auxiliares do coração e, em comentário ao post do dia 01 de setembro de 2012, elencou as relações de cinco deles com as perdas.
3) A literatura e a não-ficção
Outra característica da obra de Esterházy, apontada na palestra de 06 de outubro, foi o uso intenso de experiências biográficas ou pseudobiográficas do autor.
O Professor Biagio citou o romance Harmonia Caelestis, "obra-mundo" de "riqueza poliforme", que propõe uma literatura familiar-histórica, isto é, que apresenta a história da Hungria por meio da história da família Esterházy. Lançado em 2000, narra desde a ascensão dos antepassados de Esterházy durante o Império Austro-húngaro, quando Haydn compunha obras dentro do palácio da família, até a privação dos bens familiares com o advento do comunismo.
Mencionou, ainda, Revised Edition (2002), escrito por Esterházy como um posfácio à obra anterior, a partir do choque que o autor teve ao saber que seu pai era um informante da Polícia Secreta (ÁVH) do regime comunista. O livro, sob a forma de um diário, comenta a recém descoberta atividade do pai, bem como o processo de digestão dos fatos pelo filho. Assim como em Harmonia Caelestis, no Revised Edition, a história pessoal de Esterházy é também a história da Hungria que tenta se reconciliar com seu passado.
Corroborando os apontamentos do Professor Biagio, o próprio Esterházy, em entrevista concedida à Folha de São Paulo, em 2011, ao ser questionado sobre o fato de muitos escritores atuais tenderem a levar a narrativa ao limite do ensaio ou da autobiografia, respondeu: "Sim, eu busco não fazer distinção entre ficção e não ficção. E tento extrair tudo da linguagem". E durante a FLIP 2011, afirmou: “A família como gênero, como forma, é muito boa. Todo mundo tem pai e mãe, então o leitor entende. Mas também há desvantagens, pois há um pouco de nostalgia, de kitsch, então temos que lidar com isso”.
Em Os verbos auxiliares do coração, Esterházy afirma já no prefácio o caráter autobiográfico do texto:
Faz quase duas semanas que minha mãe morreu, tenho que me entregar ao trabalho antes que a necessidade demasiado ardente de escrever sobre ela recue para o mutismo covarde com que reagi à notícia da morte.
(…)
Quando escrevo, escrevo necessariamente sobre o passado (…)
Faço literatura, como das outras vezes, deslocado e objetificado feito máquina de lembranças e formulações. Mallarmé diz que tudo no mundo existe para se tornar livro. Nem ao menos me envergonho; me conformei com que meu rosto corresponda àquilo que meus livros mostram.
4) A contradição da literatura
A forma que ele dá às notas autobiográficas sobre a morte da mãe é a de um díptico que contém dois diários. Na literatura cristã primitiva, o termo "díptico" refere-se às listas oficiais dos vivos e dos mortos que eram comemorados numa igreja local. Os vivos eram escritos numa das folhas e os mortos, na outra.
Em Os verbos auxiliares do coração, no primeiro díptico, o lado dos vivos, está o verdadeiro diário de luto, a culpa de quem sobrevive. No segundo díptico, o diário íntimo da mãe. Nem um, nem outro dão conta de recriar a circunstância da morte da mãe ou a dor do luto do filho.
O Professor Biagio disse ter lembrado do Diário de luto, de Ronald Barthes, autor mencionado por Esterházy no prefácio ao Os verbos auxiliares do coração. Naquele livro, Barthes lida com o paradoxo: a necessidade de não deixar o falecimento da mãe cair no esquecimento versus a impossibilidade de a literatura dizer o que verdadeiramente se sente diante da morte.
A mesma contradição está no Os verbos auxiliares do coração. Se analisarmos, de forma comparativa, o subtítulo e a citação final, teremos uma boa amostra disso.
O subtítulo, Uma introdução à literatura, usa a palavra "literatura" com a conotação de belles-lettres, e, para Biagio, remete ao fato de que a grande literatura se faz por causa de ausências e de perdas. A morte é a tirania da existência, que anula a história, os fatos. A literatura é a liberdade de recriar o que passou, o que se perdeu.
Entretanto, de forma contraditória, a mesma literatura é incapaz de repor a perda, é inapta a expressar o sofrimento como ele realmente é. Assim, a citação final "um dia vou escrever tudo isso com mais precisão" remete à consciência sobre a imprecisão das palavras. O que deveria ter sido dito não foi, pois indizível.
Da mesma forma, as lacunas deixadas no texto representam a incomunicabilidade do que precisa ser falado sobre o luto e sobre a morte.
A respeito da inaptidão da literatura, Esterházy fala à Folha de São Paulo, na entrevista antes citada:
(Folha de São Paulo) Uma frase recorrente em Os Verbos Auxiliares do Coração é "Toda expressão é suave demais". No contexto, parece dizer que a literatura não dá conta da solidão, da crueldade e da morte.
(Péter Esterházy) As palavras são sempre insuficientes e nós podemos sempre tomá-las como esperança. Mas contra a morte elas não ajudam. Talvez possam servir contra a dor que se sente em relação à morte. Mas a literatura não é um meio de curar a dor, como uma aspirina contra a dor de cabeça.
5) A classificação literária
Biagio ressaltou que críticos tentam enquadrar o livro de Esterházy no conceito de romance de formação. Concordou com a possibilidade, mas encerrou a palestra com a questão: é preciso, realmente, classificar Os verbos auxiliares do coração?
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