Aproveitando a visita de Mia Couto no Brasil, adiantamos, com muita satisfação, que os encontros de Leituras do Séc. XXI já estão sendo organizados para 2013. Peça fundamental no cenário da literatura contemporânea, o autor moçambicano fará parte da lista de leitura.
Vamos comemorar? Segue a colaboração da Profa. Dra. Léa Masina e sua leitura de "A confissão da Leoa".
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“A confissão da Leoa” (2012), último romance do escritor moçambicano Mia Couto, representa o que, teoricamente, a crítica considera narrativa pos-colonial. Nele, o escritor aborda a relação entre culturas em processo de hibridização, resultante das relações entre colonialismo e imperialismo. Uma das características dessas narrativa s é tentar exprimir, mediante a língua do colonizador, uma percepção mítica da vida, fortemente telúrica e regionalizada – quase tribal, eis que a língua loca é ágrafa. Isso caracteriza grande parte das obras de Mia Couto . O escritor sabe que o homem é um ser primitivo, próximo à terra e fortemente preso aos seus instintos primevos. Natural da Beira, em Moçambique, viveu desde cedo as fronteiras entre as culturas portuguesa e africana, vindo a reconhecer-se como um negro de alma, com pele de branco.
No romance, cujos episódios giram em torno da caça a leões matadores que atacavam de modo sistemático a aldeia de Kulumani, o horror de um corpo de mulher devorado pelas feras vai, aos poucos, cedendo lugar à reflexão sobre a natureza dos homens. São os homens de dentro da aldeia – de dentro da casa – as verdadeiras feras que matam impiedosamente as mulheres desde que elas nascem. Mães e filhas são violentadas de modo atroz, têm suas vozes caladas, são mortas em vida, e seus sonhos se desfazem ante uma ancestralidade terrível que conduz e gera comportamentos tribais. Tudo porque só nos primeiros tempos Deus era mulher... Esse conflito está delineado na visão de mundo da personagem Mariamar, cuja voz ecoa por muitos capítulos, alternando-se com a de Arcanjo Baleiro, o caçador de leões. Através dessas e de outras personagens, tradições e expressões culturais não-ocidentais dão significado ao contexto, destacando questões como raça e etnia na dupla voz dos narradores e do escritor que acompanha a caçada.
Heterogeneidade, diversidade, diferença são questões que ressaltam das narrativas de Mia Couto: de um lado, a cultura nativa, com sua crença na identidade do homem e da natureza, que se lê na referência aos provérbios e ditos africanos; de outro, o modelo de pensamento ocidental , o português, e ainda o dos “assimilados”, já frutos de uma cultura híbrida. A narrativa flui, portanto, enquanto memória recente e consequência involuntária, coexistindo sem fronteiras entre o visto, o sentido e o imaginado.
Assim como em outras narrativas do autor, em “A confissão da leoa” recria-se o mundo da magia, que precede à realidade e faz com que se apreendam os sentimentos das personagens de modo simultâneo e entrecruzado. Não é a intriga o que entretém o leitor, subjugando-o ao livro. Interessam as questões que se desencadeiam em planos distintos e se reúnem no plano do texto: os deslocamentos das personagens em seu culto ao mundo natural e em sua visão particular da vida e da morte.
Mais do que a história de um possível amor entre Mariamar e Baleiro, Mia Couto está a narrar uma visão de mundo em que as fronteiras se demarcam e se diluem, e questões como independência, democracia, legitimidade, pertencimento, que ocupam o pensamento ocidental, transformam-se na visão das personagens em suas igualdades e diferenças. A caça aos leões que atacam e matam mulheres nas aldeias, mais do que metáfora, é a representação concreta do que ocorre na vida das pequenas comunidades escravizadas por modelos culturais arcaicos e seviciadas por séculos de colonização. Também a loucura é um componente essencial para se compreender a extensão da tragédia do colonizado: Romualdo, o irmão de Baleiro, é vítima da violência assimilada pelos ancestrais e posta em cheque no confronto com a cultura do colonizador. Representação da diferença, Romualdo é, como Arcanjo Baleiro, Mariamar, Haninfa e tantos outros, vítimas de uma guerra interna, que o escritor deixa que aflore à superfície do texto.
Léa Masina, maio de 2012
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