quarta-feira, 15 de maio de 2013

João Armando Nicotti lê Leonid Tsípkin

Aconteceu, dia 4 de maio, o seminário com o Prof. João Armando Nicotti sobre o romance "Verão em Baden-Baden", de Leonid Tsípkin.





Reproduzimos, neste espaço, o material preparado por Nicotti para o seminário. Este mesmo texto está publicado no blog Fôlego Literário, espaço dedicado à literatura russa e mantido pelo professor Nicotti. 

VERÃO EM BADEN-BADEN, de Leonid Tsípkin, e a Cultura Literária Russa do século XIX

Leonid Tsípkin e a edição de Verão em Baden-Baden. 
Com a descoberta da obra por Susan Sontag em Londres e a tradução direta do russo por Fátima Bianchi (Companhia das Letras, 2003) é possível conhecer a prosa única em edição brasileira deste escritor do período soviético. Tsípkin não vê seu romance publicado (sobre Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski – 1821-1881 – e sobre ele próprio, Tsípkin, pois morre uma semana depois da publicação de Verão em Baden-Baden); também é privado de sair da União Soviética sob o comando de Leonid Brejniev (1906 – 1982; mandato: 1964 – 1982). Tsípkin é judeu-russo e tem parte de sua família assassinada, assim como consegue escapar com seus pais. O antissemitismo de Stálin (1878 – 1953; mandato: 1924 – 1953) perdura neste contexto familiar trágico. Tsípkin está com cerca de 15 anos. Nasce em 1926 e morre em 1982. É médico patologista. Verão em Baden-Baden é escrito no período de 1977 e 1980. Em 1982, em 13 de março, Verão em Baden-Baden é publicado na revista de emigrados russos nos E.U.A. 


Fiódor M. Dostoiévski - A matéria do romance.
A verossimilhança em Verão em Baden-Baden é incomodativa, pois a biografia parcial de Dostoiévski (embora predominante) e a de Leonid Tsípkin se entrecruzam num jogo duplo. A genialidade de Dostoiévski não é colocada à prova, mas seu lado humano ganha força se entendido com seus defeitos, suas arrogâncias, seus arrependimentos e, sobretudo, seu caráter obsessivo e contraditório. Entretanto, nada muito diferente de escritores da época que se alimentam de comentários desconcertantes a seus pares literários. Como Tsípkin se debruça sobre a figura monumental de Dostoiévski, é possível a imagem negativa que o leitor tenha do autor de Humilhados e ofendidos (1861), principalmente se ignorar as principais biografias do autor do século XIX. 
A ficção ganha força, investindo na vida de Dostoiévski em Baden-Baden (na Alemanha) com sua segunda esposa, Anna Grigorievna Dostoiévskaia (1846-1918), e a fuga do casal das dívidas impostas pela própria família dele e credores de Mikhaíl, seu falecido irmão. 


O estilo de Tsípkin. 
Vertiginosamente sustentado por três discursos que deixam o leitor sem fôlego, como o trem que sacoleja no início da narrativa na viagem de Tsípkin de Moscou até Leningrado (São Petersburgo), a narrativa voraz funde o passado e o presente destacando o ritmo sôfrego, monologal e descritivo, alimentado por comentários e lembranças, sonhos e delírios, frases ininterruptas e pouca pontuação final, com excesso de travessões e mínima utilização de parágrafos, com mudança de foco narrativo, ausência de divisão por capítulos, espaço e tempo convencionais eliminados e, por extensão, com a íntima relação entre forma e conteúdo, pois a trajetória do casal Dostoiévski é, também, em Baden-Baden, trôpega, alucinada e estremecida pelos fantasmas de Fédia. 


As três vozes narrativas. 
A habilidade na construção do romance se dá pelas vozes interpostas no enredo de Verão em Baden-Baden. Primeiro surge o “eu” do tempo presente (Leonid Tsípkin); depois, o “ela” (Anna G. Dostoiévskaia, e sua relação com o escritor e marido Dostoiévski) e, finalmente, o “ele” (com “ela” fluindo no passado – em 1867) destruído pela epilepsia, pelas dívidas familiares e pelos jogos de roleta. A tensão do casal é compartilhada pelo leitor (auxiliada pela leitura de Tsípkin do Diário de Anna): o talento de Dostoiévski e sua inferioridade em relação a Turguêniev (1818-1883) e Gontcharóv (1812-1891), seus traumas, pensamentos, falas, vozes, sonhos e delírios e perseguições, revoltas, raivas, sadomasoquismo, humilhações, frustrações, etc. Desta forma, se aprofunda a obra de Tsípkin; assim são detalhadas as perversões e delicadezas do humano e genial Dostoiévski. 


O primeiro parágrafo de Verão em Baden-Baden. 
Além do impactante e ávido narrar, Tsípkin faz uma viagem de Moscou até Leningrado e está a ler o Diário de Anna G. Dostoiévskaia. Ligará, deste modo, o estilo utilizado com a futura trama e, por extensão, com o drama de Tsípkin e os problemas sentimentais e econômicos do autor de Crime e castigo (1866) e sua segunda esposa. O deslocamento do trem se insere no acelerado narrar. A partir dessas revelações, urge a fundição do passado (de Dostoiévski e Anna) com o presente (de Tsípkin) para que se possa chegar às conclusões que a leitura nos solicita. 


O diário de Anna Grigorievna Dostoiévskaia. 
A fonte de pesquisa de Tsípkin é também o Diário da segunda esposa de Dostoiévski, além das suas leituras da obra do autor, de seus biógrafos e dos locais que Dostoiévski vive, passa e viaja. Mas o Diário de Anna Grigorievna Dostoiévskaia é referência marcante nesta obra de Tsípkin. Primeiro porque ele é citado diversas vezes; segundo, porque quem o leu percebe o íntimo pensamento de Anna em relação à psicologia do marido, de suas frustrações, das humilhações que sente frente ao casamento com uma jovem vinte e cinco anos mais jovem, da epilepsia, dos ataques de outros escritores a Dostoiévski, da obsessão pelo jogo de roleta (embora Tsípkin não registra o incentivo esporádico de Anna a este jogo para que o marido consiga se acalmar ou, então, a ficcionalidade de Tsípkin ao colocar Anna no ambiente do cassino em Baden-Baden, o que não era permitido por Dostoiévski), do perder e do ganhar pouco do jogador Dostoiévski, das penhoras de bens pessoais, dos seguidos pedidos de perdão à esposa, do retorno à roleta, etc. Infelizmente, a tradução dessas memórias no Brasil está esgotada. Meu marido Dostoiévski (1911-1916) sai, em 1999, pela editora Mauad, R.J., com tradução direta do russo por Zoia Ribeiro Prestes. 


Algumas associações. 
Embora com obras a partir de 1940, José Saramago surpreende seus leitores com um estilo ininterrupto entrelaçado por discursos em frases diversificadas na pontuação, evitando o excesso de ponto final. Tsípkin não leu Saramago, nem tampouco Raduan Nassar (1935), em Um copo de cólera, de 1978, numa arrebatada narração apocalíptica do discurso entre o casal protagonista. Graciliano Ramos (1892-1953) não faz uso, em Angústia (1936), da divisão por capítulos, tornando o discurso de Luís da Silva vertiginoso e acelerado nas declarações sociais e em seu recalque pessoal. Tsípkin talvez não tenha lido Graciliano Ramos, embora Tsípkin nos deixa a possibilidade de entendermos a sua narrativa alucinante em Verão em Baden-Baden a partir dos delírios alucinantes, ininterruptos e “de um fôlego só” dos sonhos e divagações de diversos personagens de Fiódor Dostoiévski sem divisar em capítulos sua obra. Graciliano Ramos e Dyonélio Machado (1895-1985), o autor de Os ratos (1935), leram Dostoiévski. Na tradução de Fátima Bianchi (página 125, Companhia das Letras), como Tsípkin, sem ter lido Dyonélio Machado, se aproxima da psicologia do devedor, na busca de recursos para minimizar seu sadomasoquismo sofrimento: 

... – depois de perder o dinheiro obtido com o broche e os brincos, ele pegou a mantilha de renda dela – não queriam aceitá-la em lugar nenhum – primeiro ele a levou a um joalheiro, mas este lhe disse que só recebia objetos de ouro e indicou um tal Weissmann, mas a porta de Weissmann estava fechada e Fédia deu um pulo até em casa, chegando todo ensopado de chuva e de suor, porque, apesar do reinício da temporada de sol, às vezes ainda sucedia de cair alguma pancada de chuva, refrescando as ruas e as árvores – depois do almoço Fédia tomou a dar uma corrida até o Weissmann, mas ele disse que não aceitava esse tipo de coisa e lhe deu o endereço de uma Mme Etienne – a loja dela ficava em uma praça que Fédia, apesar de já ter estado lá antes, não conseguia encontrar de jeito nenhum, por algum motivo caía sempre em uma travessa onde havia uma sauna – por fim acabou saindo da praça – o papel em que a mantilha estava embrulhada se desmanchou todo por causa da chuva e ele apertava o pacote com o cotovelo, para que a mantilha não escapasse dali – não encontrou Mme Etienne, mas uma senhora que saiu de uma porta que levava à loja disse-lhe ser sua irmã e que ele deveria voltar no dia seguinte – (...). 


Alguns aspectos podem ser destacados da leitura deste fragmento: 1. “ele” é Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski e “dela” é Anna Grigorievna Dostoiévskaia; 2. O que consta entre os travessões dá a dimensão do banal cotidiano que leva à psicologia do momento da situação vivida; 3. a busca desesperada é similar à de Naziazeno Barbosa de Dyonélio Machado (também médico) quando da busca por um penhor da rua da Ladeira (General Câmara) por parte dos “conhecidos” de Naziazeno: Duque, Alcides e Anacleto Mondina, para que possam tirar deste penhor o anel penhorado e conseguir valor maior em outro penhor do centro da cidade (o enredo em seu conjunto sugere Porto Alegre); 4. Um pouco mais distante, mas decorrente dessa procura desenfreada, Fédia investe constantemente no jogo da roleta; Naziazeno joga, timidamente, pois vez que outra, na roleta de um estabelecimento do centro da cidade da virada do final dos anos 1920 para o início dos anos de 1930. Os ratos e Angústia são romances dostoievskianos da literatura brasileira. Luís da Silva procura, febrilmente, apagar os vestígios em sua roupa que o venham denunciar como assassino de Julião Tavares, assim como Raskólnikov em Crime e castigo. 
Mas a principal associação está na própria obra de Dostoiévski, O duplo (1846): Yákov Pietróvitch Golyádkin sofre de ambição e a despreza como convivência social. Surge, então, o seu duplo, Golyádkin Segundo, desejando a ascensão social evitada por Golyádkin Primeiro. Este duplo jogo, “aceitar é negar e negar é aceitar”, encontramos em Verão em Baden-Baden, se considerarmos a procura e a pergunta de Tsípkin sobre Dostoiévski: por que os mais representativos pesquisadores da vida deste autor que trata mal os judeus em suas obras são judeus-russos? Tsípkin caça Dostoiévski; este é feito caçador de Tsípkin. 


O resgate da cultura literária russa. 
Enumerando títulos de obras, respectivos escritores, editores e artista plástico, fica algo enfadonho e, em princípio, sem propósito. Entretanto, Tsípkin (narrador-leitor) com habilidade desenvolve a cultura literária russa – e a metaliteratura – com precisão contextualizada ao indicar a “bibliografia” russa interligada ao enredo. Eis as referências trabalhadas: títulos de obras – Crime e castigo, Diário de Anna, Os demônios, Memórias do subsolo (epígrafe de Verão em Baden-Baden), Humilhados e ofendidos, Noites brancas, Notas de inverno sobre impressões de verão, Lolita, Pobre gente, O duplo, Oblomov, A fumaça, O eterno marido, Os fantasmas, Os irmãos Karamázov, O grande Inquisidor, O idiota, Orelhas em nó, Recordações da casa dos mortos e Um jogador; autores – Saltikóv-Shedrin, Tolstói, Nabokov, Nekrássov, Turguêniev, Bielinski, Gontcharóv, Panêiev, Puschkin, Marina Tsvietáieva, Bella Akhmadullina, Búnin e Anna Grigorievna Dostoiévskaia; editores –Stellóvski, Katkóv e Suvórin; pintor de Dostoiévski – Krámskoi. 


Passagens encantadoras e tensas em Verão em Baden-Baden. 
1. O psicologismo do jogador e suas técnicas (falhas) no jogo de roleta e o comportamento de Dostoiévski depois do jogo; 2. o nadar do casal Dostoiévski; 3. o ataque epilético; 4. a veneração por Puschkin; 5. as ironias para Puschkin e Dostoiévski; 6. os judeus segundo Dostoiévski; 7. a descrição da Avenida Niévski; 8. a visita de Tsípkin ao Museu Dostoiévski – interna e externamente; 9. a morte de Dostoiévski; etc. 


O fim da viagem de Tsípkin. 
Com a chegada de Tsípkin a Leningrado, em casa de uma amiga de sua mãe (Guília, judia-russa cuja vida é resultado também do período soviético), este lê Diário de um escritor (1873 – 1878), de Dostoiévski. Destes artigos dostoievskianos, destaque por parte do autor de Verão em Baden-Baden para o artigo A questão judaica. Da busca de si próprio (de Tsípkin) no autor de O duplo, ou seja, da paixão por quem não tinha consideração aos judeus, surge a sugestão de passagens complicadas da história da Rússia Soviética: a Revolução Bolchevique, o Stalinismo e o antissemitismo. 


Leonid Tsípkin
(...) – o quê, propriamente, eu vim fazer aqui? – por que é que me sentia tão estranhamente atraído e seduzido pela vida desse homem que desprezava a mim (“é evidente”, “é sabido”, como ele gostava de falar) e aos meus semelhantes?

(tradução de Fátima Bianchi; Companhia das Letras). 


Um lamento. 
Interessante será a descoberta de um Diário de Leonid Tsípkin, homem que precisou suportar Stálin e Leonid Brejniev.




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