Inquietações sobre o contemporâneo
Colaboração de Gustavo Melo Czekster
Ao final da palestra do professor Ricardo Barberena, proferida na manhã do dia 04 de agosto, percebi que estava com mais dúvidas do que certezas. Mérito completo do palestrante: qualquer exposição de um assunto que desperte mais questionamentos ao invés de respostas demonstra a acuidade do tema, a sua relevância e a possibilidade de interagir com o objeto estudado. No caso, o professor Barberena falou da literatura contemporânea, ensinando sobre as características principais e as formas predominantes com que ela se apresenta. É um assunto ingrato, pois estamos vivendo em plena contemporaneidade. Falta o distanciamento crítico que somente o Tempo é capaz de fornecer, permitindo-nos ver aquilo que permanecerá e aquilo que será descartado. Para ficar em um exemplo que nos é caro, sempre podemos mencionar o texto “Kafka e seus precursores”, de Jorge Luis Borges, em que ele menciona as dezenas de escritores que eram contemporâneos à Kafka e a História literária esqueceu, mas cujos estilos e temáticas foram absorvidos para a formação do próprio escritor tcheco. Ainda que o Tempo não nos permita tal distanciamento (e as próprias noções de Tempo precisam ser revistas, pois a internet e a disseminação das informações transformaram a simultaneidade em um dos traços do mundo contemporâneo, diferenciando-o da época de Kafka e da própria época em que Borges teceu as suas reflexões), sempre é aconselhável dispor de alguns mecanismos teóricos para saber identificar o contemporâneo, em especial diante da miríade enlouquecedora de livros publicados e hoje disponíveis nas prateleiras das livrarias.
Por estar em formação, ainda se movendo em um terreno de instabilidades, o contemporâneo não significa necessariamente qualidade. Não é pelo fato dos autores atuais terem acesso às obras ditas clássicas que eles sabem o caminho que um livro deve seguir para sobreviver à passagem dos tempos. Ao contrário, os autores enfrentam a própria noção de clássico, em um processo que denota vontade de corromper a forma já estabelecida e, ao mesmo tempo, desejo de se manter fiel à tradição, naquele movimento pendular e contraditório que Harold Bloom convencionou chamar de “angústia da influência”. E não só isso: o mundo tornou-se um local muito maior. No passado, existiam as literaturas ditas periféricas, apesar do caráter pejorativo de tal conceito, quase inexistente na teoria atual depois de tantos anos de revisão, pois não podemos mais definir o que seja periferia, em especial se desconhecemos onde fica o centro. Porém, em homenagem ao aspecto histórico da teoria literária pós-colonialismo, consideravam-se periféricas as literaturas orientais, sul-americanas e africanas, ou seja, todas aquelas que destoavam do europeu e do anglo-saxônico. No mundo contemporâneo, tal divisão cartográfica não mais existe. Basta olhar as livrarias para se perceber um acúmulo de escritores fora do dito Primeiro Mundo. Como o professor Barberena muito bem frisou, não mais existem “fronteiras” a separarem um país do outro. Existem “limiares”, áreas de conurbação onde países e culturas diferentes criam um amálgama distinto das divisões geográficas.
Tais conceitos afetam o contemporâneo. Os escritores falam do mundo para o mundo. Neste aspecto, o professor Barberena afirma que a literatura virou algo constelar. No meio do universo, existem estrelas brilhando com maior ou menor intensidade, e um observador ocasional pode concentrar a sua atenção naquela que lhe parecer mais interessante, assim como a luz de estrelas próximas pode se tocar ou se afastar. Para entender este movimento, o conceito de rizoma conforme abordado por Gilles Deleuze – também trazido a lume na palestra – revela-se de suma importância, pois fica impossível ver onde começa e onde termina uma obra, assim como as suas implicações e cadinho de referências avança e retorna no Tempo, constituindo uma unidade indissolúvel da qual somos incapazes de ver a origem ou pressupor qual é o seu final. O movimento da literatura contemporânea representaria tanto o todo universal (uma constelação) como uma singularidade particular (um rizoma). No meio destes dois extremos, está a obra literária.
No afã de criar normas mínimas para identificação do contemporâneo, o professor Barberena listou nove características que, em maior ou menor grau, aparecem na literatura atual. Elas seriam: 1) fragmentação; 2) hibridez; 3) intertextualidade; 4) auto ficção; 5) colagem; 6) transnacionalidade; 7) da obra ao texto; 8) História como artefato narrativo e 9) a Literatura como liberdade. Em texto anterior colocado neste blog, todos estes requisitos foram muito bem analisados. Chamou minha atenção um detalhe comum a todos os traços desta contemporaneidade: eles dizem respeito à forma do texto, não ao seu conteúdo. Quais seriam os temas contemporâneos? Existe algum tema comum a todas as obras? Ou, melhor ainda, algum tema que nunca seja abordado? A classificação sugerida pela professora Beatriz Rezende, conforme exposta na palestra, trata de cinco características das obras contemporâneas. No entanto, elas são imprecisas o suficiente para que qualquer obra se encaixe no seu interior e, assim como a professora Léa Masina externou durante a palestra, prefiro a classificação feita pelo professor Ricardo Barberena.
A escolha majoritária da subversão da forma como um dos traços da literatura contemporânea me fez refletir. Particularmente, sempre achei a deturpação da forma do texto literário mais pirotecnia do que método, uma forma de esconder a singeleza do assunto por meio da brincadeira com o meio físico. Se pensarmos bem, literatura é feita de palavras e de ideias (dizem que também envolve trabalho e suor, mas ficarei no campo pragmático). Brincar com o formato do livro, com a textura da página, com a disposição das letras, com a inserção de elementos alienígenas a distrair da história me parece tão excitante quanto aqueles livros infantis que, ao abrir as folhas, revelam um castelinho. Um livro que precisa chamar a atenção brincando com o próprio formato pode ser considerado literatura ou devemos pensar no caráter lúdico da experiência? Não existem respostas fáceis para tal indagação. No entanto, a julgar pelas obras referidas como exemplos na palestra, um dos principais traços da prosa contemporânea é a brincadeira com a forma, o livro se tornando um item a ser consumido como qualquer outro objeto perecível. Aliás, este é um movimento experimentado por todos os campos artísticos: a obra transformando-se em um objeto de consumo ou, como disse o professor Barberena em uma afirmativa que assombrou minha cabeça por dias, “o livro como uma instalação artística”.
Em tempos recentes, lendo obras contemporâneas, constatei que um dos fatores que mais me desagradava era a predominância do narrador de primeira pessoa ou de narrativas voltadas para o ego de um personagem, o qual, era óbvio, não passava do próprio autor. Estava sentindo falta das narrativas despersonalizadas, ou na terceira pessoa, ou com um narrador onisciente, ou um narrador neutro, ou qualquer tipo de narração que não tentasse me doutrinar com o seu ponto de vista. Eu gostaria de ler uma obra literária e aprender com ela, não levar o escritor/personagem para tomar um café em casa. É um grande exercício de egocentrismo tentar dividir a própria personalidade no meio dos exemplares de um livro e entrar na intimidade do leitor. A influência maior deste estilo de literatura vem do fato da contemporaneidade estar vinculada como nunca à própria noção do eu e do egoísmo da personalidade, exemplificado pelos blogs que infestam a internet e até mesmo o new journalism, em que o jornalista deixa de ser veículo para a condução da história e passa a ser partícipe. Contudo, lendo uma biografia de Michel de Montaigne, constatei que “Os ensaios”, escrito no século XVI, já era uma narrativa ligada ao eu e, ainda assim, tornou-se literatura e sobreviveu aos séculos. Ao que tudo indica, escrever exclusivamente sobre si mesmo não é um traço determinante do mundo contemporâneo. Desde o início dos tempos, desde o primeiro homem que desenhou a si mesmo caçando um mamute, a literatura é um grande exercício da individualidade do artista. Neste caso, o que diferenciaria as obras literárias seria a qualidade da visão do mundo proposta no seu interior. E isto é algo que escapa do contemporâneo.
Retornando à palestra, o professor Barberena afirmou que o importante seria a validade estética do texto literário. Considerando-se o conceito grego clássico, a estética é o estudo da natureza do belo e da composição da arte como veículo para expor e disseminar a beleza no seu conceito mais distendido, que pode inclusive abarcar a feiura, o grotesco e o ridículo. Podemos dividir a análise da beleza de uma obra literária em dois aspectos: a forma e o conteúdo. Pelo o que observei na palestra, a literatura contemporânea afirma que a beleza estética está mais vinculada à forma com que o livro se apresenta e à sua capacidade de disseminar-se em razão de tal formato do que ao conteúdo nele exposto. No entanto, de acordo com o ensaio “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”, de Walter Benjamin, aquilo que determina a permanência da obra literária seria o seu conteúdo, que também é uma forma de apreciação estética. Neste sentido, não pude deixar de perceber que o conteúdo parece estar dissociado da forma.
Entre outras, algumas das características apontadas pelo professor Barberena de uma obra literária contemporânea soaram estranhas: a criação de listas arbitrárias e a repetição exaustiva de palavras e construções linguísticas. Ainda que seja um traço pós-moderno, a colocação de listas dentro de um texto literário, se for desmotivada, parece exatamente aquilo que é: um jogo insosso de palavras para criar um efeito mecânico, não estético, e aludirmos à “mecanização das relações humanas” ou coisa que o valha. Não me atrai muito; como diria Calvino na introdução de “Por que ler os clássicos”, quando se percebem as estruturas em que o texto veio a surgir, a magia da construção desaparece. Com relação à repetição de palavras, de construções linguísticas e de situações, parece mais um jogo utilizado para enfrentar a velocidade da leitura e fixar pontos na cabeça do leitor por repetição, mais ou menos como uma “decoreba” feita no colégio. Um papagaio também repete palavras, e isto não o torna mais contemporâneo do que aqueles que lhe antecederam.
Os dois pontos destacados pelo professor Barberena caracterizam a produção literária contemporânea. A literatura é tratada como um jogo entre autor e leitor, ao invés da transmissão de uma história. No entanto, como o palestrante bem destacou, o contemporâneo é muito mais do que isto, escapando de definições cômodas, algo que traduz um pouco mais de tranquilidade para aqueles que só querem ler uma boa história sem se sentirem ofendidos pela deficiência intencional da sua construção para agradar ao público. Para este tipo de leitura, o professor destacou o conceito de paralaxe, algo trazido da astronomia para dentro dos estudos literários, dizendo que a posição do observador da literatura contemporânea está em constante movimento. O que agrada um leitor pode desagradar o outro, assim como a própria noção de contemporâneo pode modificar com a passagem do tempo e a mudança do público. A paralaxe desestabiliza a teoria. É um pensamento confortador; talvez as minhas inquietações sobre o contemporâneo se tornem despropositadas. Talvez apontar características da literatura contemporânea seja uma forma de entender os fenômenos sociais e como eles se refletem em uma expressão artística. Ou, talvez, ser contemporâneo também signifique ser o fantasma de um Natal passado. A quantidade de dúvidas é diretamente proporcional à alegria causada pelas reflexões.
Ainda acredito no caráter de imanência das obras literárias. Ainda acredito que o diálogo intermitente com o passado é aquilo que forma o contemporâneo, por maior que seja o pastiche e o desejo de renegar as obras clássicas. Recordando o belo “Introdução ao Método de Leonardo da Vinci” de Paul Valéry, citado en passant pelo professor Barberena, transcrevo um trecho: “Internamente há um drama. Drama, aventuras, agitações, todas as palavras dessa espécie podem ser empregadas, contanto que sejam numerosas e corrigidas uma pela outra. Esse drama se perde na maior parte das vezes, exatamente como as peças de Menandro. Contudo, guardamos os manuscritos de Leonardo e as brilhantes notas de Pascal. Esses fragmentos nos forçam a interrogá-los. Fazem-nos adivinhar através de que sobressaltos de pensamentos, de que extravagantes introduções dos acontecimentos humanos e das sensações contínuas, depois de que imensos minutos de fraqueza mostraram-se aos homens as sombras de suas obras futuras, os fantasmas que precedem. Sem recorrer a exemplos tão grandes que acarretem o perigo dos erros da exceção, basta observar alguém que se acredite sozinho e abandone-se; quem recua diante de uma ideia; quem a segura; quem nega, sorri ou contrai-se; e imita a estranha situação de sua própria diversidade. Os loucos se entregam a ela diante de todo o mundo.” Na gênese de cada obra, existe o reflexo dos fantasmas do passado. Quanto mais o autor tenta recusar esta sombra, mais a sua obra se afasta dos grandes valores. Ao contrário do que parece ser uma tendência do contemporâneo, o importante não é a forma nem a metalinguagem ou a inserção do autor como personagem da própria história narrada. O determinante na literatura ainda é uma história bem contada. Assim como Valéry descrevendo a solidão das ideias de Da Vinci, acredito que, para sobreviver à passagem dos anos, o contemporâneo precisa encontrar refúgio naquilo que é mais essencial a qualquer ser humano: a voz interior que precisa ser falada e atravessar os séculos. Ainda precisamos ver o homem por trás da obra, não a forma que ele escolheu para expor as suas inquietações, e sim a sua própria essência. E isto ocorre nos momentos de silêncio, nos angustiantes segundos em que o artista fraqueja, na sua própria falibilidade. Na capacidade de passar o eterno para dentro de um texto. Este é o teste que a literatura contemporânea ainda deverá enfrentar. Contudo, como a palestra do professor Barberena ensinou, uma série básica de análises de requisitos será sempre essencial para separarmos o joio do trigo, a permanência da volubilidade. Só nos resta esperar o julgamento do Tempo. Para encerrar com um clichê tão desprezado nos meios literários, mas que sempre atrai o grande público, o Tempo ainda é o senhor da razão.
========================
Gustavo Melo Czekster é Mestre em Literatura Comparada pela UFRGS e escritor, autor do livro "O homem despedaçado" (editora Dublinense).
Prezado Gustavo, infelizmente não estava em Porto Alegre quando da palestra que aqui comentas. Gostaria de te dar os parabéns pelo texto que, de certa forma, supriu minha ausência ao encontro.Falas da literatura como um todo, sem distinção de genero.
ResponderExcluirEntendo que, confessionais, os Ensaios de Montaigne sobreviveram por serem, conforme ele nos avisa no início, exatamente isso: ensaios. Uma tentativa pessoal de um homem inteligente de entender o mundo. Já um romance, ainda que, conforme dizes, a voz interior não possa ser negada, não pode prescindir da história bem narrada.
Grande Gustavo! Parabéns, e grata pelo compartilhar. Sucesso e longa vida ao projeto, espero em breve poder participar.
ResponderExcluirPara que assistir a palestra do Professor Barberena se podemos contar com um texto como o de Gustavo Melo Czester aqui no blog? (risos) Bela reflexão. És um erudito e sempre gosto de ouvir os eruditos. Ao ler teu texto me surgiu a seguinte questão: será possível escrever uma boa história quando estamos mais preocupados com a pirotecnia da forma? Até que ponto o conteúdo fica prejudicado pela forma fragmentada e inovadora? Ou está na hora de criarmos oficinas literárias "cubistas" para pegarmos o trem da contemporainedade e abandonarmos o século X
ResponderExcluirI
X,? capisci?
Obrigado pela confiança, Angela, mas o meu texto dificilmente poderia suplantar a palestra do professor Barberena e a participação da plateia ao seu final. Considero mais inquietações suscitadas pelo tema do que propriamente uma intervenção, mas obrigado pelas palavras de estímulo. Quanto à tua pergunta, parece-me que, de acordo com a palestra, um dos traços do contemporâneo é justamente a brincadeira com a forma do livro em detrimento do seu conteúdo. Talvez por causa das frequentes discussões sobre o "fim do livro físico" em benefício do livro virtual, os autores atuais lidam com o conceito de livro buscando com que a forma também transmita uma intenção narrativa (ou seja o início dela). Não é possível ver até onde vai esta tendência, mas penso (e é uma opinião altamente pessoal) que a fragmentação do conceito de livro o transforma em uma obra de arte plástica ao invés de uma obra literária. É engraçado que menciones o cubismo, pois este movimento literário - na sua maioria - buscou a ruptura da forma e da estilística DENTRO do texto. O próprio professor Barberena mencionou o OuLiPo e a sua desgramatização, como um autor francês - creio ser Queneau - que escreveu um livro inteiro sem usar a letra "e". Pelas inovações gráficas alcançadas pela pós-modernidade, talvez seja possível fazer com o livro aquilo que no passado não era possível. Às vezes eu penso que existe uma preocupação maior com o exterior do livro do que o seu interior, como se uma embalagem bonita concedesse maior sabedoria para um produto inferior. Uma oficina literária cubista seria uma experiência interessante. No entanto, acho que a ruptura da forma do cubismo já é passado. Foi necessária em uma época do fazer literário, mas não é mais. E, queiramos ou não, já estamos em plena contemporaneidade, ainda que seja necessário observar alguns fatos que jamais mudarão, como a predominância do conteúdo diante do meio físico em que ele se apresenta.
ResponderExcluir"Em tempos recentes, lendo obras contemporâneas, constatei que um dos fatores que mais me desagradava era a predominância do narrador de primeira pessoa ou de narrativas voltadas para o ego de um personagem, o qual, era óbvio, não passava do próprio autor."
ResponderExcluirExatamente o que me incomoda. Mas é algo que noto muito forte na produção brasileira. E é engraçado que o que você aponta como isto estar vinculado à questão do "eu" da contemporaneidade, Cristovão Tezza teoriza como uma herança brasileira da predileção pelo lirismo, em detrimento dos paines narrados em terceira pessoa, que seria uma herança da literatura de língua inglesa.
Até por isso, tenho lido pouca literatura brasileira, pois tenho encontrado na de língua inglesa contemporânea esta narrativa em terceira pessoa que me agrada muito mais.
Alessandro, eu me recordo que, certa vez, perguntaram para o Cortázar por que quase a totalidade da obra dele eram narrativas em primeira pessoa. Ele respondeu que a única forma de conceder verossimilhança para uma história, ao seu ver, era vivendo a experiência como se tivesse acabado de acontecer. Eu realmente espero que esta predominância pela narrativa em primeira pessoa seja um traço da angústia pós-moderna de se fazer notar neste manancial de vozes díspares que povoam cada vez mais a Terra. No entanto, também penso que o narrador em primeira pessoa é unilateral e preguiçoso, faz com que a suspensão momentânea da descrença seja quase automática para o leitor. Considero uma narrativa em terceira pessoa muito mais complexa e difícil de criar verossimilhança. Não estou dizendo que o narrador em primeira pessoa deve ser repudiado, mas sim que certo tipo de histórias pede um afastamento do eu-narrador para atingir seu objetivo. Contudo, parece-me que a literatura brasileira contemporânea pende de forma majoritária para o narrador em primeira pessoa, e interrogo-me o quanto isto não tem a ver com uma eventual baixa qualidade do público leitor, incapaz de se encaixar e se identificar na história sem a "bengala" de um narrador que pensa por ele (mais ou menos o que ocorre em uma novela, com as devidas alterações de forma, claro). Neste caso, mais escritores escrevem em primeira pessoa para atingir o público leitor e, consequentemente, menos narradores em terceira pessoa (ou câmera ou intruso ou onisciente seletivo) aparecem como opção no mercado editorial. Muitas perguntas, muitas perguntas. Não sabia deste pensamento do Cristóvão Tezza, mas tenho observado a predominância do narrador em primeira pessoa mais na literatura contemporânea do que no passado da literatura brasileira. Vou observar este detalhe, ele realmente me interessou, pois daria uma explicação sociológica para a preferência por um narrador. Longe de mim discutir com o Tezza, mas, se fossemos olhar a capacidade lírica de um povo e a sua preferência por um tipo de narrador, parece-me que existem líricas muito mais vistosas e poderosas que não resultaram na preferência por um tipo narrativo, mas posso estar enganado. Quanto a mim, eu também tenho preferido outras literaturas ao invés da brasileira, pois tanta primeira pessoa subestima demais a minha capacidade como leitor, condicionando a leitura e o foco narrativo de tal forma que não é raro eu me sentir enganado ao final da leitura de um romance. Não enganado pelos personagens ou pela trama, mas enganado pelo olho do autor, que só me mostrou aquilo que ele queria que fosse visto. Assim como o teu caso, eu tenho preferido a literatura americana e a inglesa, onde as leituras parecem ser mais excitantes e desafiadoras.
ExcluirUnilateral e preguiçoso. É uma definição bastante próxima ao sentimento a que me remete esta escolha, também, Gustavo. Esta tendência tão exagerada me traz a impressão de um texto fácil, sem nuances analíticas. E que cede terreno para as elucubrações gratuitas, o psicologismo, por vezes. Fora o tom confessional, de diário, sempre presente. Realmente, como tu diz, não quero o autor tomando café na sala comigo.
ExcluirMas eu não me arriscaria a colocar a culpa no leitor, como se o escritor estivesse antevendo esta receptividade. Até porque, esta provável facilitação, que tu diz, não encontra justificativa quando analisamos os bestsellers estrangeiros que fazem sucesso no Brasil. Mesmo cumpridores do manual dos blockbusters literários, muitos deles tem a narrativa em terceira pessoa, lançando este olhar mais amplo para uma gama de personagens e estabelecendo esta função de câmera, mesmo (e que é tão própria de gêneros muito populares, como o policial, o mistério, etc)
E é bom que tu tenhas falado nisto, porque é algo que há tempos me incomoda e sobre o qual não tinha visto nenhum tipo de comentário.
PS.: Sou um grande fã de Cortázar e, no caso dele, perdôo (hehe), porque, pra mim, seu manejo formal é tão impressionante, que ter como escolha a narrativa em primeira pessoa, em alguns casos, se justificaria pela profusão de climas que seus diversos contos produzem. E pela excelência que ele alcança quando narra em terceira e até em segunda pessoa.
Sim, Alessandro, assim como o diálogo é a solução da facilidade para o autor, um narrador em primeira pessoa é a solução da facilidade para a trama. Não precisa forçar o leitor a pensar, a imaginar, coloca tudo em um ângulo único e o força a engolir sem muitos voos imaginativos. Não foram poucos os livros que fechei pensando que, se o narrador não tivesse sido em primeira pessoa, a história teria sido memorável.
ExcluirTens razão, não se pode culpar o leitor pela escolha predominante de um narrador na contemporaneidade. Escrever pensando na recepção é não escrever algo de valor. Com relação aos blockbusters literários, percebo que muito do sucesso deles está vinculado à sua disposição ns livrarias e ao generoso espaço concedido na mídia. Por que, convenhamos, "Fifty Shades of Grey" teve uma recepção midiática impressionante para um conteúdo um tanto quanto pífio. Podemos até conversar o quanto a literatura contemporânea está ligada umbilicamente à mídia, mas é uma discussão (talvez) problemática.
No entanto, tu apontas uma divergência interessante: o autor contemporâneo brasileiro prefere o narrador em primeira pessoa, mas os leitores não se importam em ler outros tipos de narradores, em especial quando surgem em uma roupagem estrangeira. Impossível não concluir que o narrador é uma opção própria dos autores brasileiros. E seria algo interessante a ser investigado, assim como esta opção majoritária por narrativas psicológicas, emotivas ou sobre relacionamentos, como se somente emoções fossem histórias dignas de serem contadas e atrair o público.
Nossa, quem sou eu para falar mal do Cortázar, um autor que sempre respeitei e por quem nutro a maior reverência? Eu não só o perdôo (hehe), como justifico plenamente a sua opção, pois Cortázar levou a narrativa em primeira pessoa a tal nível de perfeição que se torna quase impossível de ser igualado. No entanto, o que mais gosto nele é que Cortázar não tinha medo de errar ou parecer inapropriado: se a história pedia um narrador em terceira pessoa ou mesmo em segunda, ele assim o fazia, sem pensar em eventuais riscos, respeitando somente a história a ser contada. No fim das contas, é o que mais importa: ser sincero consigo mesmo e com o narrador que a história realmente pede.