Contribuição de Gustavo Melo Czekster
Soa como um interessante paradoxo que, para chegarmos
à literatura contemporânea, estejamos privilegiando o “contemporâneo” da
expressão e nos esquecendo da “literatura”. Muitas apreciações sobre o contemporâneo
surgem, mas, quando ligadas à arte literária, o conceito parece fugidio,
impreciso, instável – uma nuvem sustentando-se no vento. Como em toda
expressão, existe um espaço intersticial entre as palavras “literatura” e
“contemporânea”, uma zona de confluência e atrito, área que se situa na
fronteira do limiar e no limiar da própria fronteira. Submetida à vertigem do
atual e do feérico, a literatura consegue manter as suas características em um
mundo que privilegia a não-especificidade e a ausência de definições? Ao final
da palestra do professor Ricardo Barberena, realizada no dia 06 de abril de
2013 na abertura do seminário “Leituras do Século XXI”, não foram poucos os que
saíram perplexos e questionando o próprio fazer literário: dentro da fluidez do
contemporâneo, um quadro pode ser uma obra literária? A fotografia faz parte do
texto ou é um item agregado a ele? Os significantes da fotografia acrescentam,
diminuem ou se confrontam com os significantes da literatura? O contemporâneo
aceita tudo que não seja conceituável, mas a literatura também tem o mesmo
movimento de concordância ou se mantém aferrada no seu campo de atuação? Em
qual momento a literatura deixa de ser literatura e vira outra forma artística?
Há muitos anos, quando estava no Mestrado em Letras da
UFRGS, na área da Literatura Comparada, esta foi uma dúvida que muito afligiu
os meus colegas, assunto constante de debates na aula com continuação durante
os cafés: se a Literatura Comparada aceita tudo que seja intertextual e
interdisciplinar, qual o momento em que atingimos o máximo do seu esgarçar,
aquele instante em que a literatura incorporou tantos elementos que perdeu o
rumo da própria existência? É uma questão sem resposta óbvia. No entanto, para
dormirmos tranquilos, convencionamos uma explicação para tal angústia: um
mínimo de características específicas e metodológicas é imprescindível. Por
mais livre e sem rumo que a literatura aparente trafegar, ainda existe uma
série básica de elementos que afirmam a sua presença.
O mesmo dilema ressurge na definição do que seja
“literatura contemporânea”. Como uma criança que aprende a abrir o pote do
melado e se lambuza até o limite da fartura, os escritores imaginam que a
literatura não possui mais limites formais dentro do mundo moderno. Desta
maneira, acabam mergulhando no experimentalismo e na ruptura dos limites de um
texto literário, sempre sob a justificativa de que o contemporâneo permite a
adoção de qualquer forma. Então, os livros podem fundir texto e imagem, teses
de doutorado podem ser obras com laivos de ficcionalidade, ensaios podem ter
linguagem poética. Soa como um excitante mundo de possibilidades a serem
exploradas. No entanto, apesar do bravo mundo novo que se descortina, deve-se
caminhar com prudência pela estrada da ruptura. Afirmar a excelência de
qualquer produção artística e a sua validade sob o questionável argumento de
que representa a visão do mundo contemporâneo é uma defesa inócua. Ou a obra
existe e basta por si só ou ela fracassa no seu propósito estético; não existem
meios termos ou colocações de que “o futuro será capaz de entender a produção
atual”. Nem toda ruptura é sinal de novidade, nem toda desobediência é
original. Muitos daqueles que se escondem atrás do escudo de “serem
contemporâneos” (com todas as implicações que esta constatação implica)
aparentam estar transferindo responsabilidades e ressignificação da sua própria
produção artística para um espectador futuro. Ou seja, uma simples
transferência de responsabilidade de interpretação para um espectador ainda não
existente.
Para algo que começou na verbalidade e acabou se
condensando na estrutura física de um livro (e não podemos esquecer o debate atual
sobre a mudança para o formato eletrônico), a literatura já vivenciou várias peles.
Considerando-se que as primeiras formas literárias não passavam de desenhos em
cavernas, podemos questionar o contemporâneo e a sua afirmação de ser original
a incorporação de imagens em textos literários. Não há nada de novo sob o sol.
Talvez exista uma diferença na apreciação estética, como bem destacado por
Walter Benjamin no seu “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica”, mas não suficiente para agregar a pecha de novidade. A literatura
existe apesar do contemporâneo, que nada mais é do que um marco ilusório. O
professor Barberena muito bem destacou que qualquer pessoa pode se considerar
contemporânea a Shakespeare ou a Cervantes se colocar os dois autores dentro do
seu espaço crítico. O espaço de cada um é a área do contemporâneo.
Mais um motivo para voltarmos os olhos para a
especificidade da literatura. Em “A Poética da Prosa”, Tzvetan Todorov inicia
um capítulo afirmando, de forma provocante, que a literatura precisa ser
tratada como literatura. Em seguida, desconstitui esta ideia, afirmando que é
um lugar comum e um paradoxo, pois a junção da mesma palavra como sujeito e
predicado de uma frase não produz nenhum sentido. No entanto, podemos
desconsiderar o paradoxo semântico se considerarmos uma reescritura tal como “a
literatura precisa ser tratada como Literatura”. É algo que falta neste mundo
contemporâneo, que deseja se apossar da literatura e transformá-la em alguma
outra coisa: a ideia de que uma expressão artística pode possuir ou prescindir
de inúmeras características, mas não pode nunca perder a sua essência. Tratar a
literatura como qualquer outro meio de expressão é dar as costas para a própria
Literatura.
Na sua palestra, o professor Barberena, utilizando
Roland Barthes a título de suporte teórico, afirmou que, dentro de cada texto,
existem inúmeros outros textos. Para amparar a sua exposição, foi utilizado o
livro “Ó”, do artista plástico e escritor Nuno Ramos. Um livro inclassificável
pede uma abordagem teórica diferenciada, e o professor revelou a aproximação
crítica que fundiu teoria, literatura e fotografia em uma nova interpretação da
obra. Confesso que não li “Ó”, mas, a julgar pelos trechos apresentados como
provas do contemporâneo, pareceu-me um livro mais fundado no conceito do que no
próprio texto. O recorte de análise deixou claro que não estávamos diante de
uma obra literária: as alusões ao rompimento da forma do livro, ao livro como
instalação artística, ao fato do escritor estar mais preocupado com o aspecto
plástico da história do que com a narrativa, deixam entrever aquela que seria uma
das características mais atraentes de “Ó”, a sua impossibilidade de ser
classificado ou definido.
Impossível não se perguntar – e com a devida dose de
inquietude - se a literatura é feita com ideias ou com um texto, se o mais
importante é o conceito subjetivo a ser transmitido pelo autor ou as palavras
que formam a história. Assim como na arte plástica, Nuno Ramos pressupõe um
leitor/espectador disposto a interagir com a obra, mas não necessariamente com
as palavras. Pode-se dizer que as palavras se tornam parte da obra, e não mais
o seu significante. Pareceu-me mais uma obra conceitual em que Nuno Ramos
tentou romper as estruturas da Literatura e acabou resvalando para o outro
extremo, onde um livro deixa de ser obra literária e se transforma no preâmbulo
da apresentação de um conceito, como os cartazes que apresentam ou explicam
quadros, fotografias, exposições.
Não sei o que é aquilo que Nuno Ramos apresentou em
formato de livro, mas não creio que seja literatura. Pelo menos não me tocou
desta forma. Contudo, posso dizer com certeza que é contemporâneo. E esta
discrepância entre o “literatura” e o “contemporânea” foi o ponto que mais se
destacou na palestra. A literatura acabou sendo questionada e, por isto mesmo,
levantou-se em própria defesa. Chamou atenção que as perguntas da plateia se
concentraram na obra plástica do artista Nuno Ramos, não na validade daquilo
que ele convencionou chamar de livro. Existiu um afastamento do conceito de
literatura e um ingresso no campo da arte plástica. A discussão da plateia não
se estabeleceu sobre as palavras ou sobre o livro de Nuno Ramos, mas sobre os
conceitos expostos nas suas obras como artista. Em alguns momentos, sentiu-se
que o encontro versava mais sobre arte plástica do que sobre literatura. Em
qual momento o livro deixa de ser livro e se transforma em uma instalação?
Quando não se trata mais do texto, e sim da imagem, da sua concepção.
Sempre encaro com suspeita pessoas que se dizem
vanguardistas e, na sua fúria iconoclasta, acabam por se transformar em
conservadoras. O avesso do avesso se torna o direito. Tornar-se inclassificável
não é o mesmo que ser contemporâneo, é simplesmente virar uma nova categoria
imbricada. Não vou entrar no pantanoso conceito do que seja literatura, pois
sou incapaz de defini-la, um olhar para os livros revela gigantes como Sartre,
Mallarmé, Jakobson e Genette que se debruçaram sobre este assunto. Mas também
não vou para a conclusão simplista de Compagnon, que, após tratar dos múltiplos
conceitos de literatura, preferiu colocar todos os gatos dentro de um mesmo
saco e dizer que literatura é aquilo que as pessoas querem que seja literatura.
Assim como a liberdade para Cecília Meirelles, literatura é tudo aquilo que não
sabemos definir, mas que sabemos o que é quando nos encontramos diante dela.
Prefiro pensar como Maurice Blanchot: a literatura – e, por conseguinte, a
própria linguagem - é uma caminhada na direção da morte, pois é neste movimento
da sua impossibilidade plena de existência que ela acaba se fundamentando.
Ainda assim, a perda da especificidade do fazer literário, em benefício de um
duvidoso princípio contemporâneo, revela que a literatura pode se transformar
em outras coisas, perdendo a sua expressão e força. Talvez seja o momento de
retomar a discussão sobre o que é a literatura e quais são seus limites, ainda
mais agora, quando as definições múltiplas de contemporâneo ameaçam submergir
todas as discussões neste tsunami conceitual.
Não deixa de ser estranho que, entre todas as pessoas,
eu esteja tratando do tema “literatura contemporânea”, justo eu, que não
acredito no contemporâneo, que penso nele como algo que, assim que se alcança,
já se tornou história. É mais fácil capturar uma ninfa do que ser
contemporâneo. Mas eu acredito na literatura. Assim como Todorov, acredito que “os seres humanos precisam se assegurar de
sua sobrevivência material, obter reconhecimento social, gozar dos prazeres da
vida; eles também procuram, porém, de maneira menos consciente, mas não menos
imperiosa, encontrar em sua existência um lugar para o absoluto”. Eu
acredito que a literatura seja uma forma dos seres humanos encontrarem os seus
próprios absolutos, o seu lugar no mundo. Só espero que, nos debates sobre o
contemporâneo e as suas implicações na literatura, não façamos como a mulher do
dito popular, aquela que tocou fora o bebê e ficou com a água do parto. Mais
importante do que ser e soar contemporâneo, é tentar tocar o imanente com
palavras. Para isso existem escritores, para isso existe a Literatura.
========================
Gustavo Melo Czekster é Mestre em Literatura Comparada pela UFRGS e escritor, autor do livro "O homem despedaçado" (editora Dublinense).
Parabéns,Gustavo, pelo modo fundamentado e firme com que enfrentas essas questões. Nosso blog existe exatamente para isso, para dar espaço a controvérsias intelectuais. Para acolher a pluralidade de idéias. Tenho certeza de que muitos intelectuais olham com perplexidade todas essas inovações epistemológicas e conceituais. E as questionam! É através do diálogo fundamentado que todos nós aprendemos! Obrigada!
ResponderExcluirLéa Masina
Gostaria de que alguém que assistiu à palestra de abril de 2014 sobre Divórcio, de Riicardo Lísias, proferida pelo Prof. Dr. Ricardo Barberena, postasse algum comentário ou resenhasse a palestra... Foi instigante e particularmente, me deixou desconfortável...
ResponderExcluirObrigada, Léa Masina