domingo, 27 de outubro de 2013



Dia 9 de novembro, Leituras do séc. XXI contará com a presença do Prof. Dr. Paulo Ricardo Angelini que apresentará a leitura do romance O apocalipse dos trabalhadores, de Valter Hugo Mãe.

Um ótimo aperitivo para esse encontro é o texto de Angelini sobre outro romance de Mãe, O filho de mil homens.

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Valter Hugo Mãe é um dos novos talentos da literatura portuguesa contemporânea. Nascido em Angola, em 1971, foi muito cedo para Portugal. Publicou seis romances: o recém lançado em Portugal A desumanização (setembro de 2013), O filho de mil homens (2011), a máquina de fazer espanhóis (2010) o apocalipse dos trabalhadores (2008), o remorso de baltazar serapião, vencedor do prémio josé saramago (2006) e o nosso reino (2004). É autor dos seguintes livros infantis: o rosto (agosto 2010), as mais belas coisas do mundo (agosto 2010), a verdadeira história dos pássaros (2009) e a história do homem calado (2009). Além disso, é músico, vocalista da banda Governo. Leia abaixo uma resenha crítica do último livro lançado no Brasil, O filho de mil homens, que aponta uma mudança considerável na literatura do autor.

Afeto para abrir o mundo: O filho de mil homens, de Vater Hugo Mãe.

Crisóstomo é um homem que completa quarenta anos e carrega o vazio de não ter uma família – é um homem-metade: “via-se metade ao espelho porque se via sem mais ninguém, carregado de ausências e de silêncios como os precipícios ou poços fundos”[1] (p. 15). Camilo é um menino de catorze anos. Não chegou a conhecer sua mãe, uma anã que morreu em decorrência do parto. Foi adotado por um velho que amava os livros. Com a morte do avô, por vinte dias ficou sozinho no mundo: “Era um menino na ponta do mundo, quase a perder-se, sem saber como se segurar e sem conhecer o caminho. Os seus olhos tinham um precipício. [...] Um rapaz carregado de ausências e silêncios” (p. 21). Isaura foi um dia uma menina bonita que teve relações sexuais com um gajo pouco escrupuloso. Mais que o abandono do pretenso namorado, a perda da pureza transtornou mãe e pai. Isaura tentou recuperar a virgindade, evitando outras relações, “porque caladinha e lavada ia servir de absolutamente nova e a estrear para outro rapaz” (p. 58), esperando o homem certo, que nunca veio. Acabou por definhar, por reduzir-se a um esboço de si mesma: “Era uma mulher carregada de ausências e silêncios. Para dentro da Isaura era um sem fim e pouco do que continha lhe servia para a felicidade. Para dentro da Isaura a Isaura caía” (p. 73).
Esses três personagens de Valter Hugo Mãe, que encaram o abismo com a vertigem da própria existência, encontram-se pelo acaso ou pelo destino e, vencendo algumas barreiras, acabam por constituir um núcleo familiar: Crisóstomo conhece Camilo e vê nele um filho. Isaura chega para completar a tríade. E o que torna possível esse compartilhar de sentimentos ao mesmo tempo causa um estranhamento ao leitor, tão acostumado estamos com a literatura que mergulha na crise, no trágico, no sofrimento. Falar sobre situações belas na simplicidade que as compõe, em cenas que abraçam a afeição, nos nossos tempos, pode soar antiquado, incoerente, inverossímil, mesmo infantil. 
Aliás, não por acaso, O filho de mil homens, o mais recente romance publicado (1ª edição em setembro de 2011) pelo autor, é dedicado às crianças. Talvez haja, de fato, a necessidade de silenciarmos o nosso discurso cínico e pessimista, ratificando um processo de reeducação simbólica às novas gerações. Talvez precisemos rever a valorização do individualismo, recuperar a crença na possibilidade de uma felicidade que nasce através do afeto. O filho de mil homens, de Valter Hugo Mãe, inicia-se em tom juvenil (o primeiro capítulo traz, inclusive, ilustrações com traços pueris, a cargo de Luís Silva), e flerta, assumidamente, com o naive. Mesmo assim, é contundente, e eficiente, em suas escolhas narrativas.
Pensemos na violência sistemática, e sádica, do Senhor Ferreira com Maria da Graça, em o apocalipse dos trabalhadores. Ou no brutalismo descrito em fúria ciumenta de Baltazar – “caí em cima dela como rachando-lhe a espinha ao meio. parecia mesmo que se abria em dois, partida entre as mamas, uma para cada esquerda e direita do outro lado das costas” (MÃE, 2008, p.45) –, em o remorso de baltazar serapião. Diferentemente de suas primeiras obras, com alguns personagens que se voltam para um lado obscuro, destrutivo, aqui o autor apresenta seres que, mesmo perdidos, encontram a redenção. E essa redenção sempre passa pela relação com o próximo.
Crisóstomo, Camilo, Isaura são apenas três das peças dessa ciranda, e literalmente eles dão-se as mãos. Em vinte capítulos, o leitor é apresentado a personagens excêntricos, não raro com hábitos bizarros, que aos poucos têm suas vidas entrelaçadas e modificadas um pelo outro. Crisóstomo, por exemplo, possui um boneco de pano com quem se abraça, a fingir de filho: “Começava sempre as frases por dizer: sabes, meu filho. Era o que mais queria dizer. Queria dizer meu filho, como se a partir da pronúncia de tais palavras pudesse criar alguém” (p. 15). A palavra – materializada – e seu poder de revolução. Não a revolução política, mas uma íntima, pessoal, escondida. Na contramão das relações líquidas e rarefeitas, postuladas por Zygmunt Bauman, em Amor líquido, esses seres de Valter Hugo Mãe embrenham-se em uma luta pela sobrevivência, que só encontra amparo em um outro. Como afirma Bauman, “a sobrevivência de um ser humano se torna a sobrevivência da humanidade no humano” (BAUMAN, 2004, p. 98).
            Ao mesmo tempo em que alguns desses personagens vão à caça desse humano, oculto em si mesmo e no outro, as relações hipócritas são acentuadas. As diferenças, num primeiro momento, não são aceitas, mas observadas com desprezo ou pena. Vemos, por exemplo, o caso da personagem anã, mulher por quem todos sentiam dó pela sua figuração que beira o irreal: “as pessoas chegavam a pensar nela como nos duendes das fantasias” (p. 30). A vizinhança nutria por ela um sentimento de controle e proteção, revelado na linguagem diminutiva: “Você tome um chazinho, faça uma canjinha, cubra o pescocinho, ponha umas botinhas...” (p. 30). Contudo, essa mulher-miniatura, com pouco mais de oitenta centímetros de altura e voz de passarinho, não assumia o papel de vítima. Era uma mulher feliz a seu modo, o que começava a incomodar as pessoas, que não entendiam como uma “anã tão feita para ser triste” (p. 40) pudesse encontrar alguma alegria no viver. Quando as vizinhas, por exemplo, descobrem uma cama de casal no quarto da pequena mulher, a sua imagem modifica-se por completo. O que poderia querer uma mulher anã com uma cama de casal a não ser deitar-se com um homem? E como ela, tão diminuta, poderia sonhar com tal envolvimento romântico? A sexualização da anã transforma-a em um ser demoníaco, como se seu apetite sexual respingasse na moral hipócrita de todas as vizinhas. Excluída do convívio, uma pequena vingança da personagem: a gravidez. E descobre-se que ela teve quase todos os homens (casados) da aldeia em sua cama, e, portanto, qualquer um poderia ser o pai de seu filho, o Camilo.
Há também a personagem Matilde, mulher forte que sente vergonha de Antonino, seu filho homossexual. Na diegese é tão violento o preconceito contra ele, que em boa parte dela nem a um nome ele tem direito, sendo conhecido como o homem maricas. A própria mãe, inicialmente, nega o afeto ao filho, que sofre humilhações constantes por sua orientação sexual. Sozinho e frágil, ele encontra em Isaura uma possibilidade de troca, e com ela casa-se, a satisfazer a pressão social. Porém, não consegue cumprir seu papel de marido viril. Contudo, apenas sua presença talvez já fosse suficiente para Isaura, na ordem prática das coisas, pois “um homem maricas, por mais repugnante que fosse, seria sempre um marido com validade para melhorias fundamentais como aumentar a estabilidade financeira e assegurar o socorro nas urgências médicas e azares diversos” (p. 67).
Durante as primeiras páginas do livro, o narrador de Valter Hugo Mãe endossa o discurso preconceituoso de certos personagens, criando um duelo de incertezas com o leitor frente às intenções edificantes do que relata. Porém, ao mesmo tempo em que os personagens observam seus próprios recalques e transformam-se em seres solidários, o narrador solidifica-se em seu discurso afetivo.
E assim, esses seres ocos descobrem que “a vida podia ser mais simples” (p. 150). E a simplicidade passa pelo cultivo de um companheirismo, pela atitude de cumplicidade com o próximo. Isaura aproxima-se de Antonino não como o marido que ele não teria condições de ser, mas como o melhor amigo que ela poderia encontrar. Ao mesmo tempo, o homem maricas transforma aquela mulher vazia: embeleza-a, promove sua autoestima; e a amizade, a intimidade entre os dois se fortalece: “Via agora como parecia elementar àquele homem que desabafasse aqueles segredos, que livrasse a boca das palavras, porque ao menos as palavras partiam e partiam de dentro do peito, aliviando o peito” (p. 194). Acatar o outro é também aliviar as dores da solidão que se sente. Ao aceitar a diferença, Isaura descobre o outro em profundidade. Conhece uma pessoa que “tratava as coisas todas como se as coisas todas fossem para melhorar. Era triste que ninguém tivesse percebido isso até então” (p. 195). Matilde, quando assume a filha da empregada, morta em uma cena de divertido realismo mágico, também recupera, depois de anos, o instinto em ser mãe de Antonino. E preenche todas as lacunas na relação silenciosa que travara com o filho até então: “O seu menino mau podia estar todo errado, mas perto dela era corrigido nos perigos” (p. 178). Portanto, a aceitação das diferenças – ou como diz Crisóstomo, “cada um padecia de uma especificidade que carecia de ser pensada de modo distinto” (p. 140) – é talvez o primeiro grande impulso para a interação desses personagens. E ao ser concretizada, acaba sendo uma arma contra a vida solitária, contra a solidão que estraga as almas. Um exercício constante de aproximação, de desvelamento: “Parecia-lhe que a vida era aprender, saber sempre mais e mudar para aceitar sempre mais” (p. 217).
É provável que alguns leitores torçam o nariz para certas construções que parecem máximas de uma obra de autoajuda, ainda mais descontextualizadas, como “a felicidade é a aceitação do que se é e se pode ser” (p. 94), ou “nunca cultivar a dor, mas lembrá-la com respeito, por ter sido indutora de uma melhoria, por melhorar quem se é” (p. 213). Porém, até mesmo esse sentimentalismo desbragado em O filho de mil homens justifica-se e faz-se coerente no projeto pretendido na narração. A força da palavra afetiva – verbalizada – transforma o outro, a sociedade, o mundo: “Antes de dormir, o Camilo disse que amava o Crisóstomo, amava o seu pai. Precisou de o dizer para não se limitar no amor. Precisou de o dizer para si mesmo, baixinho, para não se limitar no amor” (p. 159). O gesto e a ação – concretizados – viabilizam essa transformação: “O Antonino sorriu iluminado. A Isaura deu-lhe a mão e riu muito. A Matilde, que não sabia que o seu filho era o melhor ser humano do mundo, sentiu que, por tolice ou novidade, ele cabia naquela casa” (p. 210).
Todos cabem nessa casa edificada por Valter Hugo Mãe. Preenchidos de humanidade, esses seres de papel carregam a certeza de que “amar uma pessoa é o destino do mundo” (p. 151), outra vez remetendo a Bauman, que afirma: “amar o próximo pode exigir um salto de fé. O resultado, porém, é o ato fundador da humanidade” (BAUMAN, 2004, p. 98).
Uma nova humanidade é criada, nesse microcosmo de Valter Hugo Mãe. Lugar em que o passado não carrega traumas, mas pode ser libertador: “Era exatamente uma saudade de ter sofrido o que sofrera, o necessário para lhe ensinar a usufruir mais tarde, agora, a felicidade” (p. 213). Crisóstomo, Camilo, Isaura, Matilde, Antonino entregam-se ao agora, fortificam-se, reconfiguram-se: “Ele (Crisóstomo) disse: amo-te, Isaura. Subitamente, metade das coisas pareciam compostas” (p. 143).
Amar o outro pode contrariar “o tipo de razão que a civilização promove: a razão do interesse próprio e da busca da felicidade” (BAUMAN, 2004, p. 97). Amar o outro pode contrariar a ideologia do cinismo, do individualismo, do lado cool que o politicamente incorreto carrega e fascina, mas em O filho de mil homens, a felicidade só existe quando pensada em doação.
É o mundo simples e maiúsculo de Valter Hugo Mãe. Após uma série de obras escritas apenas com minúsculas, quando até mesmo seu nome era grafado nas capas dos livros em caixa baixa, há essa pequena revolução estilística do autor, a refletir uma ação maior, grandiosa, mas de caráter despretensioso e mínimo. E os personagens tantas vezes fragmentários, descompostos, revelam-se aditivos. E felizes: “Eram, tanto quanto possível, os felizes. Porque a felicidade não se substituía ao resto, a felicidade acumulava-se” (p. 216).
Aos quarenta anos, o Crisóstomo acreditou no outro. “Aos quarenta anos, o Crisóstomo, com o seu inusitado entusiasmo, mudou o mundo” (p. 231). E, em um de seus últimos discursos na obra, ao filho Camilo, que já aceita aqueles diferentes dele próprio, diz: “Todos nascemos filhos de mil pais e de mais mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo” (p. 236-237). Pertencimento. O filho de mil homens é assim tão simples; um livro que diz não à solidão e que acredita na capacidade do afeto em abrir o mundo. 

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido - sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro:  
Zahar, 2004.
MÃE, Valter Hugo. o crepúsculo dos trabalhadores. Lisboa: Quidnovi, 2009. 



[1] Todas as citações de O filho de mil homens referem-se à 3ª edição da obra de Valter Hugo Mãe e serão indicadas apenas pelo número da página. 

2 comentários:

  1. Caríssimos amigos

    Curtam o texto sobre "O filho de Mil Homens", mas não esqueçam que nosso encontro, dia 9, é sobre O APOCALIPSE DOS TRABALHADORES", um livro lindo e interessante.

    Com esse encontro, encerraremos o curso deste ano.

    Em janeiro, farei 2 encontros sobre poesia e poema, da tradição a contemporaneidade. Dias 8 e 15, 4as. feiras, das 19:30 às 21:30. Quem estiver interessado, inscreva-se: leamasina@gmail,com

    abraços e até o dia 9

    Léa

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  2. Caríssimos amigos:

    Hoje tivemos nossa última reunião literária do ano. E encerramos com chave de ouro: um autor maravilhoso, com uma obra importante, que marca a diferença na literatura contemporânea. E mediada pela simpatia e pela presença afetuosa do Professor Doutor Paulo Kralic Angelini.

    Quero agradecer a presença de todos e dizer que sou muito grata também ao Angelini e a todos os demais colegas que nos auxiliaram a levar este projeto adiante, durante 2012 e 2013. E prometo pensar algumas coisas bem legais e articulá-las para 2014.

    Por enquanto, o único projeto a vista é, como expus brevemente, dois encontros sobre poesia que irão ocorrer em janeiro, nos dias 8 e 15, dependendo do número de inscritos. Serão noções básicas sobre poesia, palavra poética, poema, com pouca teoria e muita prática. Do tipo: "para gostar de ler"!

    Grande abraço,

    Léa Masina

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