Dia 9 de novembro, Leituras do séc. XXI contará com a presença do Prof. Dr. Paulo Ricardo Angelini que apresentará a leitura do romance O apocalipse dos trabalhadores, de Valter Hugo Mãe.
Um ótimo aperitivo para esse encontro é o texto de Angelini sobre outro romance de Mãe, O filho de mil homens.
------
Valter
Hugo Mãe é um dos novos talentos da literatura portuguesa contemporânea.
Nascido em Angola, em 1971, foi muito cedo para Portugal. Publicou seis
romances: o recém lançado em Portugal A
desumanização (setembro de 2013), O
filho de mil homens (2011), a máquina
de fazer espanhóis (2010) o
apocalipse dos trabalhadores (2008), o
remorso de baltazar serapião, vencedor do prémio josé saramago (2006) e o nosso reino (2004). É autor dos
seguintes livros infantis: o rosto
(agosto 2010), as mais belas coisas do
mundo (agosto 2010), a verdadeira
história dos pássaros (2009) e a
história do homem calado (2009). Além disso, é músico, vocalista da banda
Governo. Leia abaixo uma resenha crítica do último livro lançado no Brasil, O
filho de mil homens, que aponta uma mudança considerável na literatura do
autor.
Afeto
para abrir o mundo: O filho de mil homens,
de Vater Hugo Mãe.
Crisóstomo é um homem que
completa quarenta anos e carrega o vazio de não ter uma família – é um
homem-metade: “via-se metade ao espelho porque se via sem mais ninguém,
carregado de ausências e de silêncios como os precipícios ou poços fundos”[1]
(p. 15). Camilo é um menino de catorze anos. Não chegou a conhecer sua mãe, uma
anã que morreu em decorrência do parto. Foi adotado por um velho que amava os
livros. Com a morte do avô, por vinte dias ficou sozinho no mundo: “Era um
menino na ponta do mundo, quase a perder-se, sem saber como se segurar e sem
conhecer o caminho. Os seus olhos tinham um precipício. [...] Um rapaz
carregado de ausências e silêncios” (p. 21). Isaura foi um dia uma menina
bonita que teve relações sexuais com um gajo pouco escrupuloso. Mais que o
abandono do pretenso namorado, a perda da pureza
transtornou mãe e pai. Isaura tentou recuperar a virgindade, evitando outras
relações, “porque caladinha e lavada ia servir de absolutamente nova e a
estrear para outro rapaz” (p. 58), esperando o homem certo, que nunca veio.
Acabou por definhar, por reduzir-se a um esboço de si mesma: “Era uma mulher
carregada de ausências e silêncios. Para dentro da Isaura era um sem fim e
pouco do que continha lhe servia para a felicidade. Para dentro da Isaura a
Isaura caía” (p. 73).
Esses três personagens de Valter
Hugo Mãe, que encaram o abismo com a vertigem da própria existência, encontram-se
pelo acaso ou pelo destino e, vencendo algumas barreiras, acabam por constituir
um núcleo familiar: Crisóstomo conhece Camilo e vê nele um filho. Isaura chega
para completar a tríade. E o que torna possível esse compartilhar de
sentimentos ao mesmo tempo causa um estranhamento ao leitor, tão acostumado
estamos com a literatura que mergulha na crise, no trágico, no sofrimento.
Falar sobre situações belas na simplicidade que as compõe, em cenas que abraçam
a afeição, nos nossos tempos, pode soar antiquado, incoerente, inverossímil,
mesmo infantil.
Aliás, não por acaso, O filho de mil homens, o mais recente
romance publicado (1ª edição em setembro de 2011) pelo autor, é dedicado às
crianças. Talvez haja, de fato, a necessidade de silenciarmos o nosso discurso
cínico e pessimista, ratificando um processo de reeducação simbólica às novas
gerações. Talvez precisemos rever a valorização do individualismo, recuperar a
crença na possibilidade de uma felicidade que nasce através do afeto. O filho de mil homens, de Valter Hugo
Mãe, inicia-se em tom juvenil (o primeiro capítulo traz, inclusive, ilustrações
com traços pueris, a cargo de Luís Silva), e flerta, assumidamente, com o naive. Mesmo assim, é contundente, e
eficiente, em suas escolhas narrativas.
Pensemos na violência
sistemática, e sádica, do Senhor Ferreira com Maria da Graça, em o apocalipse dos trabalhadores. Ou no
brutalismo descrito em fúria ciumenta de Baltazar – “caí em cima dela como
rachando-lhe a espinha ao meio. parecia mesmo que se abria em dois, partida
entre as mamas, uma para cada esquerda e direita do outro lado das costas”
(MÃE, 2008, p.45) –, em o remorso de
baltazar serapião. Diferentemente de suas primeiras obras, com alguns personagens
que se voltam para um lado obscuro, destrutivo, aqui o autor apresenta seres
que, mesmo perdidos, encontram a redenção. E essa redenção sempre passa pela relação
com o próximo.
Crisóstomo, Camilo, Isaura são
apenas três das peças dessa ciranda, e literalmente eles dão-se as mãos. Em
vinte capítulos, o leitor é apresentado a personagens excêntricos, não raro com
hábitos bizarros, que aos poucos têm suas vidas entrelaçadas e modificadas um
pelo outro. Crisóstomo, por exemplo, possui um boneco de pano com quem se abraça,
a fingir de filho: “Começava sempre as frases por dizer: sabes, meu filho. Era
o que mais queria dizer. Queria dizer meu filho, como se a partir da pronúncia
de tais palavras pudesse criar alguém” (p. 15). A palavra – materializada – e
seu poder de revolução. Não a revolução política, mas uma íntima, pessoal,
escondida. Na contramão das relações líquidas e rarefeitas, postuladas por
Zygmunt Bauman, em Amor líquido, esses
seres de Valter Hugo Mãe embrenham-se em uma luta pela sobrevivência, que só
encontra amparo em um outro. Como afirma Bauman, “a sobrevivência de um ser
humano se torna a sobrevivência da humanidade no humano” (BAUMAN, 2004, p. 98).
Ao mesmo tempo em que alguns desses
personagens vão à caça desse humano, oculto em si mesmo e no outro, as relações
hipócritas são acentuadas. As diferenças, num primeiro momento, não são
aceitas, mas observadas com desprezo ou pena. Vemos, por exemplo, o caso da
personagem anã, mulher por quem todos sentiam dó pela sua figuração que beira o
irreal: “as pessoas chegavam a pensar nela como nos duendes das fantasias” (p. 30).
A vizinhança nutria por ela um sentimento de controle e proteção, revelado na
linguagem diminutiva: “Você tome um chazinho, faça uma canjinha, cubra o
pescocinho, ponha umas botinhas...” (p. 30). Contudo, essa mulher-miniatura,
com pouco mais de oitenta centímetros de altura e voz de passarinho, não
assumia o papel de vítima. Era uma mulher feliz a seu modo, o que começava a
incomodar as pessoas, que não entendiam como uma “anã tão feita para ser
triste” (p. 40) pudesse encontrar alguma alegria no viver. Quando as vizinhas,
por exemplo, descobrem uma cama de casal no quarto da pequena mulher, a sua
imagem modifica-se por completo. O que poderia querer uma mulher anã com uma
cama de casal a não ser deitar-se com um homem? E como ela, tão diminuta,
poderia sonhar com tal envolvimento romântico? A sexualização da anã
transforma-a em um ser demoníaco, como se seu apetite sexual respingasse na
moral hipócrita de todas as vizinhas. Excluída do convívio, uma pequena
vingança da personagem: a gravidez. E descobre-se que ela teve quase todos os
homens (casados) da aldeia em sua cama, e, portanto, qualquer um poderia ser o
pai de seu filho, o Camilo.
Há também a personagem Matilde,
mulher forte que sente vergonha de Antonino, seu filho homossexual. Na diegese
é tão violento o preconceito contra ele, que em boa parte dela nem a um nome ele
tem direito, sendo conhecido como o homem
maricas. A própria mãe, inicialmente, nega o afeto ao filho, que sofre humilhações
constantes por sua orientação sexual. Sozinho e frágil, ele encontra em Isaura uma
possibilidade de troca, e com ela casa-se, a satisfazer a pressão social.
Porém, não consegue cumprir seu papel de marido viril. Contudo, apenas sua
presença talvez já fosse suficiente para Isaura, na ordem prática das coisas, pois
“um homem maricas, por mais repugnante que fosse, seria sempre um marido com
validade para melhorias fundamentais como aumentar a estabilidade financeira e
assegurar o socorro nas urgências médicas e azares diversos” (p. 67).
Durante as primeiras páginas do
livro, o narrador de Valter Hugo Mãe endossa o discurso preconceituoso de
certos personagens, criando um duelo de incertezas com o leitor frente às
intenções edificantes do que relata. Porém, ao mesmo tempo em que os
personagens observam seus próprios recalques e transformam-se em seres
solidários, o narrador solidifica-se em seu discurso afetivo.
E assim, esses seres ocos
descobrem que “a vida podia ser mais simples” (p. 150). E a simplicidade passa
pelo cultivo de um companheirismo, pela atitude de cumplicidade com o próximo.
Isaura aproxima-se de Antonino não como o marido que ele não teria condições de
ser, mas como o melhor amigo que ela poderia encontrar. Ao mesmo tempo, o homem maricas transforma aquela mulher
vazia: embeleza-a, promove sua autoestima; e a amizade, a intimidade entre os
dois se fortalece: “Via agora como parecia elementar àquele homem que
desabafasse aqueles segredos, que livrasse a boca das palavras, porque ao menos
as palavras partiam e partiam de dentro do peito, aliviando o peito” (p. 194).
Acatar o outro é também aliviar as dores da solidão que se sente. Ao aceitar a
diferença, Isaura descobre o outro em profundidade. Conhece uma pessoa que “tratava
as coisas todas como se as coisas todas fossem para melhorar. Era triste que
ninguém tivesse percebido isso até então” (p. 195). Matilde, quando assume a
filha da empregada, morta em uma cena de divertido realismo mágico, também recupera,
depois de anos, o instinto em ser mãe de Antonino. E preenche todas as lacunas
na relação silenciosa que travara com o filho até então: “O seu menino mau
podia estar todo errado, mas perto dela era corrigido nos perigos” (p. 178). Portanto,
a aceitação das diferenças – ou como diz Crisóstomo, “cada um padecia de uma
especificidade que carecia de ser pensada de modo distinto” (p. 140) – é talvez
o primeiro grande impulso para a interação desses personagens. E ao ser
concretizada, acaba sendo uma arma contra a vida solitária, contra a solidão que estraga as almas. Um
exercício constante de aproximação, de desvelamento: “Parecia-lhe que a vida
era aprender, saber sempre mais e mudar para aceitar sempre mais” (p. 217).
É provável que alguns leitores
torçam o nariz para certas construções que parecem máximas de uma obra de
autoajuda, ainda mais descontextualizadas, como “a felicidade é a aceitação do
que se é e se pode ser” (p. 94), ou “nunca cultivar a dor, mas lembrá-la com
respeito, por ter sido indutora de uma melhoria, por melhorar quem se é” (p. 213).
Porém, até mesmo esse sentimentalismo desbragado em O filho de mil homens justifica-se e faz-se coerente no projeto
pretendido na narração. A força da palavra afetiva – verbalizada – transforma o
outro, a sociedade, o mundo: “Antes de dormir, o Camilo disse que amava o
Crisóstomo, amava o seu pai. Precisou de o dizer para não se limitar no amor.
Precisou de o dizer para si mesmo, baixinho, para não se limitar no amor” (p. 159).
O gesto e a ação – concretizados – viabilizam essa transformação: “O Antonino
sorriu iluminado. A Isaura deu-lhe a mão e riu muito. A Matilde, que não sabia
que o seu filho era o melhor ser humano do mundo, sentiu que, por tolice ou
novidade, ele cabia naquela casa” (p. 210).
Todos cabem nessa casa edificada
por Valter Hugo Mãe. Preenchidos de humanidade, esses seres de papel carregam a
certeza de que “amar uma pessoa é o destino do mundo” (p. 151), outra vez
remetendo a Bauman, que afirma: “amar o próximo pode exigir um salto de fé. O
resultado, porém, é o ato fundador da humanidade” (BAUMAN, 2004, p. 98).
Uma nova humanidade é criada,
nesse microcosmo de Valter Hugo Mãe. Lugar em que o passado não carrega traumas,
mas pode ser libertador: “Era exatamente uma saudade de ter sofrido o que
sofrera, o necessário para lhe ensinar a usufruir mais tarde, agora, a
felicidade” (p. 213). Crisóstomo, Camilo, Isaura, Matilde, Antonino entregam-se
ao agora, fortificam-se, reconfiguram-se: “Ele (Crisóstomo) disse: amo-te,
Isaura. Subitamente, metade das coisas pareciam compostas” (p. 143).
Amar o outro pode contrariar “o
tipo de razão que a civilização promove: a razão do interesse próprio e da
busca da felicidade” (BAUMAN, 2004, p. 97). Amar o outro pode contrariar a
ideologia do cinismo, do individualismo, do lado cool que o politicamente incorreto carrega e fascina, mas em O filho de mil homens, a felicidade só existe
quando pensada em doação.
É o mundo simples e maiúsculo de
Valter Hugo Mãe. Após uma série de obras escritas apenas com minúsculas, quando
até mesmo seu nome era grafado nas capas dos livros em caixa baixa, há essa
pequena revolução estilística do autor, a refletir uma ação maior, grandiosa,
mas de caráter despretensioso e mínimo. E os personagens tantas vezes
fragmentários, descompostos, revelam-se aditivos. E felizes: “Eram, tanto
quanto possível, os felizes. Porque a felicidade não se substituía ao resto, a
felicidade acumulava-se” (p. 216).
Aos quarenta anos, o Crisóstomo
acreditou no outro. “Aos quarenta anos, o Crisóstomo, com o seu inusitado
entusiasmo, mudou o mundo” (p. 231). E, em um de seus últimos discursos na obra,
ao filho Camilo, que já aceita aqueles diferentes dele próprio, diz: “Todos
nascemos filhos de mil pais e de mais mil mães, e a solidão é sobretudo a
incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo” (p. 236-237).
Pertencimento. O filho de mil homens
é assim tão simples; um livro que diz não à solidão e que acredita na
capacidade do afeto em abrir o mundo.
Referências
BAUMAN,
Zygmunt. Amor líquido - sobre a
fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro:
Zahar, 2004.
MÃE,
Valter Hugo. o crepúsculo dos
trabalhadores. Lisboa: Quidnovi, 2009.
[1]
Todas as citações de O filho de mil
homens referem-se à 3ª edição da obra de Valter Hugo Mãe e serão indicadas
apenas pelo número da página.
Caríssimos amigos
ResponderExcluirCurtam o texto sobre "O filho de Mil Homens", mas não esqueçam que nosso encontro, dia 9, é sobre O APOCALIPSE DOS TRABALHADORES", um livro lindo e interessante.
Com esse encontro, encerraremos o curso deste ano.
Em janeiro, farei 2 encontros sobre poesia e poema, da tradição a contemporaneidade. Dias 8 e 15, 4as. feiras, das 19:30 às 21:30. Quem estiver interessado, inscreva-se: leamasina@gmail,com
abraços e até o dia 9
Léa
Caríssimos amigos:
ResponderExcluirHoje tivemos nossa última reunião literária do ano. E encerramos com chave de ouro: um autor maravilhoso, com uma obra importante, que marca a diferença na literatura contemporânea. E mediada pela simpatia e pela presença afetuosa do Professor Doutor Paulo Kralic Angelini.
Quero agradecer a presença de todos e dizer que sou muito grata também ao Angelini e a todos os demais colegas que nos auxiliaram a levar este projeto adiante, durante 2012 e 2013. E prometo pensar algumas coisas bem legais e articulá-las para 2014.
Por enquanto, o único projeto a vista é, como expus brevemente, dois encontros sobre poesia que irão ocorrer em janeiro, nos dias 8 e 15, dependendo do número de inscritos. Serão noções básicas sobre poesia, palavra poética, poema, com pouca teoria e muita prática. Do tipo: "para gostar de ler"!
Grande abraço,
Léa Masina