A Revista Brasileiros publicou uma entrevista com Ricardo Lísias em setembro de 2013. As reflexões de Lísias tanto sobre Divórcio, quanto sobre as questões da literatura brasileira contemporâneas podem ser lidas clicando aqui.
Abaixo, o início da matéria.
Existe o escritor Ricardo Lísias, corintiano (por causa da democracia de Sócrates e Vladimir), ex-morador de Itaquera e autor festejado de seis livros, e há o personagem Ricardo Lísias, protagonista de dois deles, O Céu dos Suicidas e o recente Divórcio, ambos pela Alfaguara, além do novo, que está sendo escrito (na página ao lado há uma amostra da sua produção atual, feita no dia da entrevista). Coincidências biográficas os unem, assim como as polêmicas suscitadas por esses romances, livremente baseados em fatos reais.
Divórcio, especialmente, dividiu os leitores e, independentemente dos méritos literários, causou mal-estar entre alguns jornalistas e escritores, que teriam reconhecido as pessoas envolvidas na trama, uma história de separação com vários elementos constrangedores. Mas não só por isso: o livro também é um ataque à grande imprensa e à comercialização da cultura.
A prosa, clara, rigorosa, espelha a simplicidade aparente do enredo: Ricardo Lísias, o personagem – também escritor –, descobre o diário da jornalista com quem está casado há quatro meses e o lê. O conteúdo mostra que, além de infiel, sua mulher o despreza profundamente. Desnorteado, abandona o apartamento em que moravam e tenta se recompor.
A partir daí, o leitor se depara com vários trechos do diário, que o autor/personagem vai lançando estrategicamente em meio à narrativa. O efeito é devastador. A mulher que emerge das confissões é fria e ambiciosa, a ponto de atropelar a ética quando lhe convém. Seu diário era o depositário de um lado insensível que ela não consegue controlar, como dirá mais adiante, ao tentar uma reconciliação.
O livro é bom. Mais que isso, é ótimo, principalmente quando aponta, com lucidez, as fissuras éticas na grande imprensa e em eventos culturais como o Festival de Cannes. Mas deixa sérias dúvidas quanto a sua legitimidade. Não foram poucos os que viram no romance uma vingança. De fato, a vida da ex-mulher de Lísias, uma conhecida jornalista de cultura, teria sido bastante prejudicada e muitos de seus amigos e conhecidos estariam indignados.
Se o personagem Ricardo Lísias sofre o diabo com a humilhação, o premiado escritor, presente na seleção de jovens autores brasileiros feita pela revista Granta, passa a impressão de ter superado bem o trauma que lhe deu a centelha para por o livro em movimento. Aparentemente indiferente ao clamor (restrito a um meio, ele insiste) que o acusa de mau-caratismo, defende a autonomia estética do romance e afirma que nada ali é real de fato (ainda que o narrador diga enfaticamente o contrário). E vai mais longe, ao dizer que seu objetivo era mesmo prejudicar as pessoas, no sentido de causar desconforto, provocar o leitor, tirar a literatura do marasmo.
Na entrevista a seguir, feita na redação da Brasileiros, Lísias, que também é professor de inglês e português (fez mestrado na Unicamp e na USP), e dá cursos de Literatura Contemporânea, explica melhor toda a celeuma e fala de seu meticuloso processo de trabalho. Também comenta o estado atual da imprensa e da literatura e conta de sua participação nas recentes manifestações de rua.
Brasileiros – Em Divórcio, há momentos em que o narrador diz que é tudo uma ficção e em outros que é tudo real. Qual versão acreditar?
Ricardo – O livro pretende discutir questões de narrador. No Brasil, as pessoas leem a literatura ainda com os padrões do realismo, e isso causa um problema técnico em relação ao narrador. O narrador modernista é totalmente diferente, é um narrador que se coloca muito em jogo, e as pessoas não percebem isso, confundem o narrador com o autor, como se fosse possível o autor falar. Isso não existe, só fala o narrador num romance. Mesmo que eu coloque o meu nome, mesmo que eu coloque a minha foto pelado, não sou eu, é uma foto, e isso, tirando um grupo de leitores, as pessoas não entendem perdem o mais importante, que é o aspecto artístico. O modernismo não pegou como conceito. Um professor da USP que é diretor da Biblioteca Mário de Andrade me disse uma coisa curiosa, que é a seguinte: “Quando o modernismo chegou ao Brasil, a indústria editorial era ínfima, ao contrário da França e Inglaterra, por exemplo”. Então, os próprios textos modernistas ficaram fechados em um circuito muito pequeno. Quando a indústria editorial cresce muito, de novo está em voga o romance comercial, que tem natureza realista mais vulgarizada, e que ainda se impõe no Brasil. Esse é o cerne do meu romance. Até agora as pessoas estão tentando saber quem é quem.
Brasileiros – Mas o ponto de partida é real.
Ricardo – A ideia inicial do livro parte de um evento traumático, como no Céu dos Suicidas, mas eu não gosto dessa palavra realidade. Acho que é uma questão de linguagem e as pessoas ficam querendo saber o que aconteceu na minha vida, como se eu pudesse dois anos depois recompor o que aconteceu dois anos antes. O que aconteceu se perdeu no momento em que aconteceu.
Brasileiros – De qualquer maneira, você tem uma herança daquele momento em que as coisas aconteceram. Por exemplo, você é o cara que corre hoje a partir daquele momento. Isso é verdade?
Ricardo – Não. É tudo mentira isso de corrida, eu corria desde o mestrado. Ninguém consegue correr a São Silvestre treinando três meses e fazendo o tempo que eu faço. É um livro de ficção que infelizmente as pessoas ficam querendo fazer estardalhaço em cima. Hoje, fui tomar o ônibus ali na Consolação com a Paulista e um casal me parou e perguntou se eu tinha escrito Divórcio. Foi a primeira vez que isso aconteceu fora de uma livraria. Eu falei que sim. E o casal disse: “Nossa, você deve estar arrasado!”. E queriam me dar um abraço! Não amigo, não tem nada disso. Mas parece que não tem saída.
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